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Chocho, anêmico, frágil e inconsistente: o livro de Direito Civil Digital

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1 de agosto de 2024

Entenda os graves problemas das novas regras legais propostas pela Comissão de Juristas do Senado para as tecnologias digitais no Brasil

O Código Civil de 2002 está passando por uma reforma no Congresso Nacional, e o Senado Federal montou uma Comissão de Juristas para apresentar uma proposta. O relatório final entregue em abril de 2024 pela Comissão propõe a criação de um livro chamado Direito Civil Digital, que precisa ser objeto de um olhar crítico urgente. Vou listar nesse texto as questões que mais me preocupam.

Contexto histórico

Em agosto de 2023 foi constituída pelo Senado Federal uma Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil de 2002. O grupo, com 38 pessoas, analisou 280 sugestões, realizou audiências públicas e apresentou um anteprojeto de mais de mil artigos, que renovam as previsões sobre família, casamento, divórcio, reprodução assistida, doação de órgãos, direitos dos animais, herança, propriedade, dívidas e empresas, além do tal “Direito Civil Digital”.

A ideia de um Código Civil é sistematizar as normas jurídicas que regem as relações privadas. A codificação é um fenômeno histórico recente, que teve seu ápice com Napoleão Bonaparte na França, em 1804. Seu propósito era reduzir a zero a margem de interpretação dos juízes na aplicação do direito, com regras abrangentes e completas. Nessa ambição extrema e positivista, buscou-se racionalizar a redação de forma organizada, abarcando a totalidade das questões que poderiam gerar controvérsia entre as pessoas, desde o nascimento até a morte, passando por deveres, negócios, propriedade, casamento e reprodução.

Originalmente, o Brasil estava submetido às regras que haviam sido elaboradas por Portugal. Após uma série de tentativas, a proposta de Clóvis Beviláqua chegou ao Congresso Nacional em 1899 e tramitou durante mais de 15 anos. Assim, o primeiro Código Civil do Brasil foi aprovado na virada de 1915 para 1916. Ele valeu no país por mais de 80 anos, até ser substituído pelo atual, aprovado em 2002. No período, passou por duas grandes revisões, em 1919 e em 1962.

Também o Código de 2002 levou muito tempo para ser aprovado: mais de 30 anos, desde a apresentação do projeto de lei, em 1975. A proposta de Miguel Reale e um conjunto de juristas chegou a ser aprovada pela Câmara dos Deputados em 1984, mas foi suspensa com a derrocada do regime militar e a mudança da ditadura para a democracia no Brasil. Retomada a tramitação em 1997, o Código foi sancionado em 2002 e começou a valer em 2003. Essa trajetória fez com que, apesar das mais de mil emendas propostas, o texto tenha ficado muito defasado em relação às questões jurídicas que já necessitavam de uma resposta da legislação na virada do milênio.

Com esse histórico, não deve ser encarada com surpresa a proposta de revisão do Código Civil passados 20 anos de sua aprovação. O que assusta é, primeiro, a continuidade na crença de que seja possível, em um esforço de racionalidade, antecipar na forma de um texto único toda a problemática que envolve a vida civil nos dias de hoje. Trata-se da herança de uma mentalidade que negava a necessidade da interpretação textual e via o mundo quase como uma máquina.

Em segundo lugar, já que é para dar sequência a essa tradição normativa, assusta o descuido com que aspectos técnicos do direito estão sendo tratados. O risco prático é de aprovarmos uma legislação nova insuficiente tanto para substituir a antiga, quanto para orientar a resolução dos problemas atuais.

Em especial, quero me aprofundar em específico no exame do novo livro de Direito Civil Digital.

Um ressecamento epistemológico

A primeira coisa que me incomoda é a ideia de dedicar uma porção autônoma do Código Civil para falar em Direito Digital. Afinal, não existe uma área dedicada ao Direito Analógico.

Entendo que a sociedade da informação impõe novos desafios ao direito, em razão das mudanças nas relações provocadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, em particular pela Internet. As soluções jurídicas a esses desafios podem ser agrupadas e sistematizadas como um campo distinto de conhecimento no mundo do direito, e que podem ser chamadas de Direito Digital, mas ao meu ver essa é uma estratégia meramente didática e acadêmica, e não normativa.

No Constitucionalismo Digital de que sou defensor, por exemplo, não se defende uma criação de normas separadas. Pelo contrário, trata-se de uma postura diante do conhecimento que levanta como bandeira ideológica o reconhecimento de que as melhores soluções para os desafios do Direito Digital passa por reafirmar os direitos fundamentais e reforçar a separação de poderes – não apenas executivo, legislativo e judiciário, mas também o poder econômico do mercado.

Portanto, o ideal seria que as novas regras sobre direito digital estivessem diluídas por todo o Código Civil. Até porque, em nossa vida cotidiana, cada vez mais há menos separação entre as atividades presenciais e aquelas digitais. As ferramentas online servem a propósitos analógicos: convidar pessoas para uma festa ou reunião, pedir comida ou chamar um meio de transporte. E os acontecimentos analógicos são divulgados com velocidade pelos meios de comunicação online, como votações de projetos de lei ou ataque a tiros a um candidato a presidência de outro país.

Uma anemia com o momento

A segunda reflexão crítica que aponto é a falta de sensibilidade legislativa da proposta em relação a muitas discussões que estão em andamento no próprio Congresso Nacional, ou que já foram resolvidas na legislação ou pelo Supremo Tribunal Federal.

Em uma lista rápida, o texto da Comissão interfere nos seguintes temas:

Tratar desses temas no Código Civil não seria um problema se houvesse diálogo em vez de sobreposição e incompletude. A proposta não se mostra abrangente e nem detalhada. Em verdade, consiste de poucos artigos para cada um dos muitos temas de que trata. Assim, deixa de fora muitas das questões que já estão gerando controvérsia e que são objeto de outros projetos, desfaz soluções que já estavam se sedimentando e multiplica as incertezas. 

Uma fragilidade conceitual

Os conceitos propostos se mostram inconsistentes em relação à disciplina milenar do Direito Civil. São muitos os exemplos de termos que praticamente não fazem sentido jurídico. Não quero alimentar nenhum juridiquês, mas a consistência dos termos, sua coerência e correlação com o restante do Código é uma necessidade de integridade da norma e até do direito como um todo.

Ilustro esse ponto com o capítulo e a definição de uma tal “situação jurídica digital”, sendo que “situação jurídica” não é um conceito técnico, nem consta no Código Civil. A ideia era falar do conceito velho conhecido de “fato jurídico”, ou se trata de outra coisa?

Uma inconsistência estrutural

O proposto livro de Direito Civil Digital é composto por um único título, “das normas aplicáveis ao direito civil digital”, dividido em dez capítulos:

  1. Disposições gerais
  2. Da Pessoa no ambiente digital
  3. Das situações jurídicas no ambiente digital
  4. Do direito ao ambiente digital transparente e seguro
  5. Patrimônio digital
  6. A presença e a identidade de crianças e adolescents no ambiente digital
  7. Inteligência artificial
  8. Da celebração de contratos por meios digitais
  9. Assinaturas Eletrônicas
  10. Atos notariais eletrônicos – E-notariado

A ordem desses capítulos não segue nenhuma lógica. Eles poderiam acompanhar, por exemplo, as fases da vida humana, como o atual  Código Civil; ir do geral para o particular; seguir a ordem alfabética. Mas apenas há caos.

Porque os nomes dos capítulos 5, 6, 7, 9 e 10 não começam com “do” ou “da”, como a outra metade? Qual o sentido de dar um apelido para o título 10?

De volta para o rascunho

A jornalista Renata Vasconcellos virou meme ao ler uma carta de defesa de Michel Temer que atribuía uma lista de adjetivos negativos à acusação. Pois também se pode identificar que a nova proposta de Código Civil se mostra “chocha, anêmica, frágil e inconsistente”.

Se nada der muito errado, haverá tempo hábil para que a proposta seja aprimorada. Mas em nossos tempos conturbados, não é muito recomendável apenas confiar que as dinâmicas da política levarão aos melhores resultados. É necessário participar, intervir e se fazer ouvir. Esse texto é um primeiro esforço para registrar essa série de problemas em um dos trechos da redação proposta pela Comissão de Juristas. Certamente há outras questões que também merecerão nossa atenção no futuro, além da necessidade de apresentar formalmente essas reflexões ao Congresso Nacional.

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Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito, Inovação e Tecnologia e líder do grupo de pesquisa Cultura Digital & Democracia no Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pesquisador bolsista no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS); integrante voluntário do Aqualtune LAB: Direito, Raça e Tecnologia; ex-Diretor Presidente do Instituto Beta Internet e Democracia (IBIDEM), três ONGs componentes da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Consultor Sênior de Políticas Públicas do Capítulo Brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) para os temas Responsabilidade de Intermediários e Criptografia. Conselheiro Consultivo do centro de pesquisa Internetlab. Consultor Associado da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ).

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