#BrequeDosApps: o algoritmo liga a demanda à oferta, mas essa conta fecha?
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
21 de março de 2022
Que a internet tem modificado radicalmente a nossa vida e a nossa rotina em tantas esferas da vida cotidiana não é novidade para ninguém. Acessórios e plataformas passam a ser ferramentas importantes para gestão do trabalho, da saúde, da vida financeira, e até mesmo das relações e dos encontros. Isso nos traz desafios regulatórios, entraves trabalhistas que interagem com a nossa realidade social marcada por grave desemprego e vulnerabilidade socioeconômica. Também não é de se espantar que isso tudo mude nossos hábitos. No Brasil, em 2019, éramos 4 milhões de brasileiros que tinham como fonte de renda Uber e iFood. Esse texto dialoga com a paralisação dos entregadores de plataformas, suas reivindicações por trabalho justo e sobre ideias de como pensar tecnologias coerentes com a sociedade que queremos construir.
#BrequeDosApps: o problema é real, e conhecido
Um estudo do projeto Fairwork, que analisa as condições de trabalhadores de plataformas em 27 países, divulgou na última semana o relatório sobre a situação brasileira. A análise é feita com base em seis critérios para trabalho justo, sendo eles: remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. O resultado é ultrajante, entre as seis plataformas mais utilizadas no ano de 2021, a que alcançou maior nota numa escala de zero a dez alcançou, apenas, dois pontos no indicador desenvolvido pelos autores. Três delas não marcaram nenhum ponto. Na América Latina os relatórios referentes aos países: Chile, Equador e Brasil já estão públicos, e entre todos eles a maior nota atingida até agora é três.
Essa é uma realidade que já vem sendo denunciada pelos próprios trabalhadores há um tempo. A falta de transparência nos critérios das plataformas, a remuneração inadequada, a transferência dos custos de trabalho ao indivíduo e a falta de segurança e suporte em situações adversas são algumas das queixas recorrentes.
Na última semana acompanhamos mais um episódio das paralisações #BrequeDospps no estado do Rio de Janeiro. O movimento iniciado em 2020 por entregadores de plataformas como Ifood, UberEats, 99Food, entre outras, reivindica melhores condições de trabalho e, entre as suas pautas estão: fim das rotas duplicadas, para remuneração devida dos entregadores; taxa mínima de 8 reais; fim das subidas nos prédios e taxa de espera de 20 minutos, pois com frequência são multados por dificuldade de estacionar durante a entrega; ajuda de custo mensal e em dezembro; fim dos bloqueios indevidos sem defesa. A organização se prepara para uma nova paralisação no dia 29 de março no Rio de Janeiro, no dia 1° de abril em Belo Horizonte.
Importar soluções é, também, importar necessidades
Um cenário de crescente dependência de digitalização de serviços não deve se desprender das particularidades locais, do contrário, corremos o risco de aprofundar nossas desigualdades. Ao pensarmos na presença dessas grandes empresas gestadas no Vale do Silício, que operam com uma lógica de empreendimento pensadas para um contexto muito distante do nosso, observamos uma importação de soluções desenvolvidas para o norte global e atenta, portanto, às suas particularidades. Ao importarmos essa “solução” de forma acrítica importamos, também, uma série de necessidades e conflitos com a realidade local. Como fazer, contudo, que a transformação digital pela qual passamos seja uma oportunidade de desenvolvimento coletivo e social?
O podcast do Data Privacy Brasil, o Dadocracia, dedicou seu último episódio “Plataformização e as más condições de trabalho” a conversar sobre os resultados do relatório divulgado pela própria organização. Para isso, convidou o professor Rafael Grohmann, que fez parte da execução do estudo. O convidado traz um ponto interessante, também descrito no relatório, sobre experiências distintas sobre plataformização de serviços ao redor do mundo, inclusive no Brasil: as experiências de “cooperativismo de plataforma”, como é nomeada no estudo, se caracterizam por iniciativas locais, alavancadas por pequenas organizações autogeridas e voltadas para as necessidades comunitárias com mais autonomia e responsabilidade, e, também, responsivas aos desafios de cada contexto.
Ideias que movimentam a economia solidária e trazem como cerne as potencialidades de cada contexto precisam ser impulsionadas e fortalecidas. O relatório traz exemplos de aplicativos como o “Contrate quem luta”, que liga trabalhadores da construção civil do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST); ou o TransEntrega, que reúne pessoas trans trabalhando como entregadoras.
Pensar o novo, resgatar o velho
O episódio do podcast “O que o Milton Santos diria do iFood”, da série Prato Cheio, discute, à luz do trabalho de Milton Santos, o que um dos pensadores mais importantes da história brasileira e um dos maiores geógrafos do mundo teria a dialogar com as mudanças econômicas e culturais o que a plataformização de serviços tem nos proporcionado.
Nesse episódio, que reúne entrevistas e obras do autor e as coloca em diálogo com as tecnologias contemporâneas, que nos apresentam de forma muito evidente traços da estratificação e desigualdade social brasileira. De primeira eu já lhe diria, leitor, que ouça o podcast, pois traz reflexões importantes para pensarmos tecnologia e sociedade em relação. Mas o ponto alto do episódio, ao meu ver, é que o autor tinha grande esperança e confiança ao avaliar o potencial de criação das populações periféricas.
Se você, assim como eu, experienciou uma realidade onde se faz “muito com pouco”, ou onde “quem divide o que tem é que vive pra sempre”, sabe que nas periferias e comunidades brasileiras a solidariedade e criatividade são enfrentamentos para as dores e desigualdades sociais que nos atravessam. Não me interessa, aqui, romantizar nenhum tipo de sofrimento ou necessidade, longe disso, pelo descaso de autoridades políticas e uma política segregacionista e racista temos milhões de famílias em situação de insegurança alimentar e vulnerabilidade socioeconômica.
O ponto é que, ao venderem a ideia de que trabalhar para plataformas é “empreender”, sujeitos entregam jornadas exaustivas e com retorno injusto e, ao fim do dia, não há tempo ou disposição para a criatividade, apenas muito cansaço e a responsabilização de que no dia seguinte esteja de pé, saudável e capaz se custear todos os materiais necessários para servir à empresa. Essa lógica onera desproporcionalmente o trabalhador e não é sustentável. Além disso, essa mudança é maior do que apenas econômica, e atravessa hábitos e cultura. Antes, se faltasse uma xícara de açúcar na casa de alguém, não havia solução mais imediata do que recorrer ao vizinho. Hoje, aplicativos de entrega te prometem entregar o produto embalado direto do mercado em 10 minutos.
As condições de trabalho precárias evidenciadas pelas estatísticas e estudos, vocalizadas pelos próprios trabalhadores no #BrequeDosApps devem servir de alerta para a pergunta: será que essa conta fecha?
Como fazer o futuro?
Alguns países, como a Espanha e os que compõem o Reino Unido, já avançaram na regulação do trabalho de plataforma, reconhecendo e assegurando direitos trabalhistas. No Brasil, essa é uma pauta que devemos encarar com urgência. No cenário onde 12 milhões de brasileiros estão desempregados, é preciso calcularmos nossas estratégias para geração de emprego, mas não só, para gerar dignidade e segurança aos cidadãos brasileiros.
Para isso não podemos perder de vista nosso contexto, nossas demandas reais e as ferramentas e conhecimentos que temos sobre nós mesmos. Isso não é um apelo ao retrocesso tecnológico, de forma alguma, isso não parece nem possível nem desejável a essa altura, mas é um convite a pensar a tecnologia em diálogo com nossas demandas, que nos dê autonomia para então criarmos um futuro onde a conta feche.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa adaptada do Storyset.
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.