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Bloqueio da internet como estratégia de repressão

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2 de dezembro de 2019

Na última semana, foi noticiada a medida tomada pelo governo do Irã de bloquear a internet no país. O bloqueio começou na sexta-feira, 15 de novembro, depois do governo ter anunciado o aumento no preço do gás, o que teria tensionado os problemas econômicos e sociais no país e provocado a erupção de protestos nas ruas. Não é a primeira vez que isso é usado como estratégia no Irã, tampouco em outros países do mundo, no entanto, este foi o maior bloqueio registrado no país, durando cerca de uma semana e levando a taxa de conectividade a níveis pífios. No texto de hoje discutiremos sobre como os países têm se apropriado do bloqueio da internet como estratégia política de controle e as ameaças aos direitos humanos e civis colocadas em evidência neste cenário.

Bloqueio de internet como estratégia política

Em 2016, em uma conferência em Bruxelas pelos direitos humanos na internet, RigthsCon, um conjunto de pessoas interessadas, entre formuladores de políticas públicas, ativistas, sociedade civil, técnicos, entre outros, desenvolveram o conceito para bloqueio da internet, conhecido pelo termo em inglês internet shutdown. Ficou entendido que este fenômeno é caracterizado pela interrupção voluntária da internet e meios de comunicação eletrônicos para uma população específica ou um território, tornando-os inacessíveis ou inoperáveis. Pode ser marcado, também, pela suspensão de redes sociais e, geralmente, tem intenção de controlar o fluxo de informações.

O caso mais recente do bloqueio da rede no Irã foi acentuado no sábado dia 16 de novembro, e o país chegou a ficar com a faixa de conectividade a 5% por alguns dias, segundo a organização independente NetBlocks – mapping net freedom. No dia 23 a internet começa a ser restaurada e chega a 64% de conectividade. De acordo com o relatório elaborado sobre a interrupção da internet no Irã, a princípio os desligamentos foram segmentados em diferentes áreas geográficas, seguido de um bloqueio quase total da internet e de desligamento parcial dos serviços de telefonia. Se trata do maior bloqueio em termos de complexidade e amplitude já registrado pelo Observatório da NetBlocks.

Outros casos têm ocorrido ao redor do mundo, especialmente em lugares com instabilidade política. Na América Latina vimos o caso da Venezuela, onde no dia 16 de novembro o provedor de internet estatal da Venezuela interditou o uso das redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram, em um dia em que estavam previstos protestos nas ruas. Na ocasião, os serviços da Google, Youtube e Bing também foram suspensos por uma hora, enquanto Juan Guaidó, líder da oposição ao governo, fazia um pronunciamento via streaming.

Esses casos não são exclusivos, ao contrário, o bloqueio da rede por parte de autoridades governamentais têm se tornado cada vez menos pontuais. Segundo o relatório elaborado pela coalizão internacional #Keepiton, em 2016 foram registrados 75 bloqueios, para 2018 o número mais que dobrou, atingindo 196 casos, com um fato geográfico remarcável, já que 67% deles ocorreram na Índia.

Porque suspendem a internet?

Desligar a internet de um país parece uma medida um tanto quanto extrema, e é difícil para nós, cidadãos que experimentamos uma rotina fortemente atrelada à internet e ao mundo digital, imaginar como seria viver alguns dias de blackout. De acordo com o levantamento feito pelo Access Now e #Keepiton, é muito raro que os governos reconheçam a responsabilidade sobre a medida, e quando o fazem, o fazem em termos gerais sendo pouco precisos acerca da causa da interrupção, com uma abordagem de normalizar o acontecido. Em geral, as justificativas oficiais versam sobre a prevenção de compartilhamento de fake news, desinformação e discurso de ódio, segurança nacional, ou para evitar fraudes em exames nacionais. No entanto, o que é observado é que esses argumentos mascaram as verdadeiras motivações que, na maioria das vezes, têm cunho político e repressor, em situações de instabilidade política, de violência comum.

Dentre os 196 casos de 2018, mais de 80% foram oficialmente explicados por motivos de segurança pública, com 91 casos, 40 deles por segurança nacional e 33 para combate a disseminação de notícias falsas e discurso de ódio. Contudo, o relatório demonstra que os bloqueios de internet estão sendo utilizados para momentos de crise, as justificativas oficiais recorrentemente escondem a real motivação do bloqueio da internet, sendo que da totalidade dos casos, 53 registravam instabilidade política, em 45 deles a ocorrência de protestos e 40 casos de estado de violência comum. Neste sentido, as justificativas baseadas em contenção de notícias falsas frequentemente exprimem uma ação de resposta a protestos, eleições, entre outras atividades da pública. ”

Os bloqueios de internet e a ameaça aos direitos humanos e liberdades fundamentais

A internet atravessa a forma como nos comunicamos, organizamos, agimos, e, em última instância, modifica a maneira como nos posicionamos no mundo. O desligamento súbito da internet traz implicações de ordem social, econômica e política de forma muito contundente e compromete liberdades e garantias fundamentais dos indivíduos, como o direito à liberdade de expressão. Os trabalhos de pesquisadores demonstram que esta medida está recorrentemente associada a governos autoritários e a intenção, na maior parte das vezes, é de tolher a liberdade e administrar uma situação de desordem pública por vias não democráticas.

O relatório da #Keepiton demonstrou que “quando os governos desligam a Internet citando ‘segurança pública’, é frequentemente evidente para os observadores que, na realidade, as autoridades podem temer protestos e interromper o acesso à Internet para limitar a capacidade das pessoas de se organizar e se expressar, seja online ou offline “. Além disso, as entidades mandatárias têm o controle sobre a escopo do bloqueio, podendo isolar populações e territórios geograficamente localizados, podendo agravar contextos de vulnerabilidade.

O diretor da ONG de tecnologia NetFreedom Pioneers, especialista em segurança cibernética,  declarou para o portal The New York Times que o ato do governo iraniano desligava os manifestantes um do outro e também do resto do mundo e que, desta forma,  “A opressão pode então existir no vácuo, sem solidariedade ou responsabilidade no terreno”. O diretor da ONG pelos direitos humanos no Irã (IHR) Mahmood Amiry-Moghaddam, declarou que esse bloqueio “pode indicar os planos das autoridades iranianas de usar ainda mais violência contra os manifestantes”, e conclamou a comunidade internacional para que reagissem. Em 2018, pelo menos 33 incidentes de violência ocorreram durante o perído de suspensão da internet. Em um artigo de 2014 da pesquisadora Anita R. Gohdes sobre o contexto de guerra civil na Síria demonstrou que havia uma correlação entre o aumento da violência e número de pessoas mortas em conflitos, e o bloqueio da internet, que era usado como tática militar para enfraquecer os opositores.

Além disso, perdas econômicas são densamente registradas nessas ocasiões, segundo o relatório da Delloite sobre impactos econômicos decorrentes da interrupção na rede, o prejuízo cresce quanto maior é o grau de conectividade e dependência de uma sociedade à esfera digital. Para contextos de ecossistema digital maduro, estima-se que o impacto seja de 26,6 milhões de dólares a cada dia por cada 10 milhões de habitantes. Para países com grau médio de nível de acesso à internet, 6,6 milhões de dólares e, para países com baixo grau, 0,6 milhões de dólares.

Conclusão

Pensar sobre o bloqueio da internet como uma estratégia política para contextos adversos nos coloca frente a uma questão sobre a quem serve a internet e por quem ela é operada e governada. E, neste ponto, ressalta-se a importância de zelar por um modelo de governança que seja descentralizado e envolva os múltiplos setores envolvidos e interessados, governo, sociedade civil, empresariado e comunidade científica.

Na última semana aconteceu o 14° Fórum de Governança da Internet de 2019 em Berlim, e a chanceler alemã Angela Merkel fez um discurso na cerimônia de abertura que versava sobre a importância de uma internet multisetorial, que preze pelo diálogo e que seja universal, sem fronteiras. Em sua fala, endossa a internet como um bem público, que deve servir à população, e não ser uma ferramenta de censura e de bloqueios arbitrários.

A internet é um espaço da vida pública na medida em que ela se mistura com as nossas demandas e nossas atividades sociais, é preciso estar atento e zelar para que tenhamos os nossos direitos assegurados, online e offline, e que a internet não se converta numa ferramenta de controle e de censura, mas que sirva à atividade cidadã.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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