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Apps de controle menstrual e a sua saúde como produto

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24 de junho de 2019

É cada vez mais usual que criemos contas em diferentes aplicativos para gerir diferentes esferas da nossa vida. Os aplicativos de controle e acompanhamento de ciclos menstruais vêm com a promessa de proporcionar às mulheres maior consciência sobre seus ciclos, bem como auxiliar no planejamento familiar – seja com fins de evitar ou alcançar uma gravidez. Entretanto, o debate sobre o uso dos dados fornecidos pelas usuárias é crescente, bem como a preocupação com as competências e limites desse tipo de aplicativo. Segundo a empresa norteamericana de consultoria e pesquisa, Frost & Sullivan, o mercado de Femtech (tecnologias aplicadas ao gerenciamento da saúde feminina, como os aplicativos aqui tratados) têm o potencial de alcançar o valor de mercado de 50 bilhões de dólares em 2025. No post de hoje, discutiremos sobre o manuseio e capitalização desses dados extremamente íntimos, e como esses aplicativos podem estar se valendo de algoritmos preditivos e influenciando em nossa rotina, vida íntima, consumo e saúde reprodutiva. 

Minha saúde ou o “seu” dado?

Não é novidade que os dados que fornecemos todos os dias, associados às nossas contas e perfis, e os rastros que deixamos ao navegar na Internet são guardados e utilizados para fins publicitários. Se cruzamos informações de diferentes sites e banco de dados, possuímos algo como que uma caricatura, capaz de revelar perfis de consumo e comportamento que podem dizer mais sobre nós do que podemos mensurar, e em alguns casos os dados podem ser mais sensíveis do que outros. Em 2018, o IRIS escreveu sobre os riscos da prática controversa de se perguntar o número do CPF do cliente nos caixas de farmacia, sem a devida transparência ou informação para o quê aquele dado seria utilizado. No caso dos aplicativos de controle menstrual, os algoritmos são treinados para compreender a fase hormonal em que nos encontramos e, então, fazer inferências e previsões sobre como se comportará nosso corpo nos próximos dias, como deve estar o seu humor e, ainda, nos sugerem padrões de conduta . No livro de Fernanda Bruno, intitulado Máquinas de ver, modos de ser, a autora discorre sobre o cenário de vigilância generalizada em que vivemos, onde dispositivos de vigilância e controle estão diluídos nas mais distintas instâncias da vida pessoal e coletiva. Ao escrever sobre algoritmos preditivos, ela nos alerta o efeito que eles podem exercer sobre a nossa vida quotidiana, induzindo comportamentos e consumo, por exemplo. Neste caso, isso acontece quando o aplicativo sugere que você faça teste de ovulação recorrentemente, por exemplo, ou que você consuma doces quando você estiver em período pré menstrual. Em 2015, o aplicativo Glow poderia avisar o parceiro da usuária que ela estaria entrando no período fértil, e que seria conveniente lhe mandar flores (para perfis que usavam o aplicativo como forma de alcançar uma gravidez). Na extensão Glow Nurture, desenvolvido para mulheres que desejam acompanhar a gravidez em curso, além delas serem aconselhadas a fornecer diversas informações sobre seu estado físico, psicológico, dieta e saúde, o aplicativo oferece uma versão do app para que os companheiros dessas usuárias fornecessem “informações objetivas” a respeito do humor da sua parceira. No site do aplicativo a propaganda è a seguinte: 

“A previsão do tempo é difícil … mas a previsão dos sintomas não deve ser. Tudo novo no Glow: um recurso de previsão que pega seus dados passados ​​e os usa para mostrar um pouco do que esperar desta semana. São cãibras no horizonte? Fadiga? E se sim, o que você pode fazer à respeito? O Glow sabe…” 

Em um paper de 2016 chamado Intimate surveillance (vigilância intima), a autora Karen Levy, professora do departamento de Ciência da Informação da Universidade de Cornell, nos alerta que esse tipo de algoritmo é sempre pautado em alguma norma social de comportamento e de entendimento sobre o corpo feminino e seu funcionamento, em última instância, eles possuem uma concepção do que é ser uma mulher em idade fértil. Com base em quê? Sob a visão de quem? Isso quer dizer que não se tratam de “conselhos” neutros, eles reproduzem um tipo de senso comum que, na maioria das vezes, não comporta a pluralidade e singularidade de cada corpo feminino, transformando organismos complexos, únicos e atravessado por diferentes vivências em dados padronizados, excluindo, assim, uma série de outras experiências que não caberão nesses padrões. 

Limites do aplicativo

O controle da saúde feito por meio de aplicativos e a tendência de que os indivíduos passem a buscar por si mesmos soluções para as suas questões, é consonante com uma transformação no entendimento da responsabilidade sobre si como atribuição dos sujeitos. Cada vez mais as pessoas tornam-se empreendedores de si mesmos, exercendo o trabalho de forma autônoma, responsáveis pelo seu sucesso. Isso inaugura uma nova dinâmica social que, em alguma medida, transforma as relações de trabalho que conhecíamos, bem como o papel que atribuímos aos especialistas. Neste sentido, sujeitos podem gerir a própria saúde pelo conhecimento do seu corpo ensinado por aplicativos, um outro exemplo são as plataformas que te lembram e ensinam uma rotina de exercícios físicos, ou de dieta.  

Os algoritmos estão preparados para processar os dados que as próprias usuárias fornecem – data de início e término do ciclo, frequência de relações sexuais protegidas ou não, humor, sintomas físicos como câimbras ou dor nos seios, dentre várias outras opções disponìveis – para preparar predições e oferecer previsões sobre as fases do ciclo menstrual. Uma pesquisa do Centro Médico da Universidade de Columbia, estudou 108 aplicativos com versão gratuita disponível na Apple Store para avaliar suas características e funcionalidade. Entre os resultados, está o fato de que 95% deles contavam com o envolvimento de profissionais da saúde, e em somente 5% deles havia literatura citada. 

Alguns dos aplicativos se denominam métodos contraceptivos, como o Natural Cycles. Em julho de 2018 o jornal The Guardian publicou uma matéria sobre um movimento de contestação sobre os limites desses aplicativos contraceptivos, com o relato de uma mulher que interrompeu uma gravidez indesejada depois de usar a plataforma e conta que:

“Eu usei o aplicativo da mesma maneira como faço a maior parte da tecnologia da minha vida: não sei bem como funciona, mas tenho como certo que funciona”.

Em janeiro do mesmo ano, a Agência de produtos médicos da Suécia começou a investigar o aplicativo depois de um número relevante de mulheres que recorreram ao aborto nos hospitais terem relatado utilizar o aplicativo Natural Cycles como método contraceptivo. O aplicativo respondeu que os números estavam dentro da margem do previsto visto que o número de usuários havia aumentado, logo as falhas também aumentariam. Segundo o site, a taxa de sucesso do programa é de 93% para uso típico e 99% para uso perfeito. Após a avaliação, a agência julgou que o aplicativo funcionava como o esperado, entretanto indicou que o risco de gravidez indesejada deveria estar explícito nas instruções de uso. 

A quem interessa meus dados íntimos ?

Em abril, o portal The Washington Post, contou sobre a prática de compra de dados dos aplicativos de controle da saúde reprodutiva por parte de empresas a fim de obter informações sobre a saúde de suas funcionárias grávidas. As mulheres recebiam, inclusive, o incentivo de um dólar ao dia para que utilizassem o aplicativo regularmente, segundo a empresa, como uma forma de incentivar o cuidado com a saúde de seus empregados, se planejarem melhor para os próximos meses e reduzir os gastos com saúde. Os empregadores obtinham acesso às informações sobre a gravidez e pré natal, se o bebê havia nascido prematuro, se havia alguma complicação, e até mesmo ao planejamento de quando as mulheres pretendiam retornar ao trabalho. Além das empresas contratantes, o setor de seguradoras de saúde também comprou o acesso a esses dados. Fato é que esse tipo de informação diz muito sobre as nossas condições de vida e predisposição a complicações e doenças. O tratamento desse tipo de dado, que são extremamente íntimos e sensíveis, pode ser usado de forma discriminatória – já imaginou isso sendo levado em conta na hora que seu chefe pensar em uma promoção do seu cargo?, ou que você tenha o acesso a seguradoras de saúde dificultado uma vez que eles sabem a sua condição de saúde? 

Conclusão

Nós construímos e alimentamos os produtos mais valiosos dessas empresas: um algoritmo que melhora quanto mais dados nós o oferecemos e um banco de dados extremamente interessantes para as indústrias em torno da saúde reprodutiva da mulher, em destaque a indústria farmacêutica. As políticas de privacidade não são claras o suficientes para que saibamos o que será feito a partir do momento em que ingressamos na plataforma. Em geral, os termos de consentimento são banalizados, escritos em letras miúdas, e demasiado amplos. E, ainda que um dia queiramos excluir nosso usuário, os dados ainda ficarão disponíveis para a empresa. Alguns aplicativos têm termos mais transparentes e responsáveis para a proteção de suas usuárias, nesta matéria, a organização Codin Rights faz uma leitura das configurações de alguns dos aplicativos mais populares. 

O debate sobre privacidade, vigilância, governança algorítmica, não tem previsão de término. Ao contrário, a cada dia nos deparamos com novos entraves e facetas de um mesmo problema. Enquanto #mulheresnagovernança, permaneceremos atentas para uma autonomia sobre o nosso corpo e também sobre os nossos dados. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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