Não se formulam soluções milagrosas em laboratórios, no legislativo tampouco
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
27 de julho de 2020
No esforço de enfrentarmos os nossos desafios enquanto sociedade identificamos diferentes atores no campo político. Cientistas, tomadores de decisão, movimentos sociais, sociedade civil localizada em diferentes setores se posicionam como agentes interessados em incidir sobre o debate público. No encontro dessas instituições que partilham diferentes visões de mundo, métodos e preceitos, surgem questões sobre como contribuir e avançar o debate público para o fortalecimento da democracia, dos direitos civis e enfrentamento dos desafios sociais que se apresentam.
O cientista e o debate público
Os desencontros entre trabalhos científicos e noções do senso comum não datam de hoje. A comunidade científica tem falhado em demonstrar como o conhecimento produzido dentro dos muros das universidades, públicas em especial, pode transformar a sociedade que vive fora dela. Talvez porque tenhamos falhado, também, em transformá-la, de fato. No entanto, o tempo especialmente conturbado que vivemos ao atravessarmos a pandemia causada pelo coronavírus, colocou a ciência em posição de centralidade, e a expectativa sobre a entrega de uma vacina ou um tratamento que nos tire dessa crise humanitária, sanitária e econômica é grande. A comunidade acadêmica parece enfrentar dois grandes desafios, então: sobreviver e produzir num cenário de desmonte das políticas de ciência no país, e solidificar sua imagem perante a sociedade de forma que o fazer científico seja do conhecimento do cidadão ordinário. Além de uma divulgação sobre os produtos da ciência, faz-se necessário, também, uma divulgação de seus meios e métodos. É preciso que as pessoas saibam, também, que o trabalho da ciência demanda tempo, estudo, método, experimentos, testes, acompanhamento, etc. Nesse sentido, o momento de crise, onde as nossas falhas ficam mais evidentes, pode nos dar pistas sobre onde estamos falhando e por quais caminhos podemos seguir para que a ciência seja efetivamente uma ferramenta de transformação social.
Autoras dos estudos sociais da ciência e tecnologia, como Sheila S. Jasanoff em seu texto Contested Boundaries in Policy-Relevant Science, escreveram sobre os momentos de dissenso entre cientistas e formuladores de políticas públicas. Isso acontece porque, apesar de ambos os atores geralmente buscarem se amparar em fatos para tomar melhores decisões, o tempo da ciência e o tempo da política pública não acontecem em sintonia. Isso pode gerar conflitos, e, num cenário onde se busca por medidas emergenciais, trazer mal entendidos sobre o desempenho das áreas do conhecimento. Saber qual remédio será ou não eficaz para combater a ação do vírus no corpo humano demandará tempo, assim como a formulação de uma nova vacina, que pode levar anos. É por isso que, sozinha, a ciência médica e farmacêutica não trará uma bala de prata para um desafio que se impõe em diferentes escalas. No entanto, a comunidade científica é constrangida a apresentar respostas rápidas e eficazes, e experimenta um lugar de vulnerabilidade quando é chamada a interagir em instâncias onde questões políticas se impõem de forma mais evidente. A autora argumenta, por exemplo, que percepções de risco construídas cientificamente podem ser permeadas de aspectos subjetivos.
É preciso abraçar os problemas com a complexidade com que eles se apresentam
Em seus escritos, Renato Dagnino nos alerta sobre as perdas para ciência decorrente das formas de se organizar por departamentos e não por problemas nas universidades brasileiras. Isso porque essa forma de dividir o conhecimento, ou a nossa capacidade de entender e interagir com o mundo de forma científica não reflete a forma como os desafios sociais se apresentam em diversos níveis: técnico, econômico, logístico, social, cultural, político, comunicacional, etc. Em vista disso, é indispensável que se reflita sobre a necessidade de que a ciência abrace os problemas com a complexidade com que eles se apresentam, prezando pela multidisciplinaridade e reconhecendo, enfim, seus aspectos políticos e subjetivos. Assim como as instâncias regulatórias e tomadoras de decisão devem compreender que o enfrentamento de um problema se dá em diferentes níveis, e sobre todos eles é importante que se pense ao traçar uma estratégia de ação, na medida em que tecnologia e sociedade se modificam retroativamente, apesar do mito da neutralidade permear o imaginário das discussões tanto científicas quanto regulatórias. Nesse texto, o autor faz uma análise sobre o trabalho da universidade pública e o seu engajamento pouco eficaz com a transformação social, Dagnino argumenta que a pretensão científica de se consolidar como instituição que busca uma “verdade” que está “dada por natureza” e precisa ser descoberta – tal como o termo sugere, como um ato de deixar exposto aquilo que já estava ali, porém se escondia sob um tecido opaco – é pouco relevante para a sociedade.
Mesmo as tecnologias mais robustas e bem pensadas para serem incorporadas ao mercado e/ou à sociedade podem manifestar resultados diferentes ao interagirem com outras categorias sociais. Em contato com as especificidades econômicas, culturais e circunstanciais de cada espaço, uma tecnologia (aqui pensada como artefatos físicos mas também políticas públicas, por exemplo) pode apresentar um fim diferente daquele para o qual foi proposto. A exemplo, quando aplicativos intermediários para serviços autônomos (como serviço de motorista ou de entregadores) foram propostos como possibilidade de complementação de renda. No entanto, num contexto de desigualdade social e desemprego as aplicações acabam se tornando fonte principal de renda dos indivíduos, que passam a enfrentar problemas como falta de seguridade social e vêem suas condições de trabalho serem deterioradas. As estratégias de enfrentamento da pandemia, por sua vez, enfrentam resistências culturais para que as pessoas se adequem aos protocolos de higiene e normas de distanciamento – o que se torna especialmente difícil quando essas medidas ainda se tornam objeto de questionamento para lideranças negacionistas – considerar essas nuances é importante para que se construa uma comunicação eficaz de uma política coordenada.
Regulação da internet, moderação de conteúdo e problemas que não se findam com a criação de uma lei.
Instituições reguladoras tampouco poderiam resolver esses problemas por si só, numa só jogada. Se a regulação ou criminalização dos nossos desafios sociais resolvesse nossos problemas deveríamos, então, viver num mundo sem crimes e sem mais conflitos. No entanto, não é essa a realidade que se percebe. Apesar de momentos de efervescência política terem um apelo para soluções rápidas e eficazes, é preciso ponderar com cautela e identificar as causas, os catalisadores e as consequências de um problema para incidir sobre ele. No âmbito das discussões sobre governança da internet temos discutido há meses sobre a possibilidade de regulação das Fake news, com um especial apelo ao momento político que se aproxima das eleições municipais, com a tendência de que campanhas e candidaturas se consolidem majoritariamente na capacidade de mobilização nas redes e captação da atenção dos eleitores, dado o cenário de distanciamento social. Temos, portanto, um problema que se apresenta em diversos níveis e com consequências sociopolíticas sérias.
No entanto, os esforços legislativos têm se demonstrado frágeis, com propostas construídas sem o devido tempo de maturação do debate e cautela com os direitos civis. Combater a desinformação no Brasil se demonstra uma pauta urgente e necessária à manutenção democrática no país, contudo, assim como se repete na sabedoria popular “o remédio que cura, também pode matar”, e estratégias que busquem a regulação por vias da criminalização e atribuição de poder excessivo à terceiros (no caso, as plataformas de aplicação, como Facebook ou Twitter) podem significar ameaças à liberdade de expressão e aos direitos fundamentais. Nessa outra postagem do nosso blog, Gustavo discute sobre o debate brasileiro do PL das Fake News, seus riscos e controvérsias. Os desafios para moderação de conteúdo contemplam, portanto, aspectos técnicos, políticos, culturais, educacionais, e, escolher enfrentá-lo com propostas que desconsiderem a sua complexidade pode nos trazer novos problemas – tão ou mais graves quanto.
Conclusão
Esse texto buscou pontuar inquietações que emergem ao pensar a incidência da comunidades de pesquisa na resolução de problemas sociais complexos e urgentes, em diálogo com diferentes atores e demandas. É desejável que a população reconheça que não virá de dentro dos laboratórios, nem das casas legislativas, uma única “bala de prata” que resolva os nossos problemas sociais, que se localizam de forma mais ou menos estruturais, que são percebidos de diferentes formas de acordo com os atores e que precisam ser lidos e encarados com complexidade, sob o risco de acolhermos soluções imediatas porém simplistas. Assim como é importante que haja maior transparência sobre o fazer científico e como ele se conecta com a realidade social. Da mesma forma, é válido o esforço dos atores envolvidos de considerar as demandas e contribuições das diferentes frentes, em busca de construir estratégias conscientes e coordenadas.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
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Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.