Arte, educação e política no II Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital
Escrito por
Gustavo Rodrigues (Ver todos os posts desta autoria)
28 de maio de 2019
Entre 02/05 e 04/05, foi realizado o II Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital, evento promovido pelos programas de pós-graduação em psicologia da PUC Minas e da UFMG. Com o tema “Saber, Criação e Virtualidade”, o Simpósio reuniu especialistas de diversas áreas (psicologia social, psicanálise, ciência política, filosofia, arquitetura, artes visuais, antropologia, comunicação, etc) para discutir as relações entre experiências, novas tecnologias e seus impactos na sociedade.
No post de hoje, apresentamos algumas das principais discussões do evento.
A subjetividade na era digital
Um dos principais temas tratados durante o evento foram os efeitos das novas tecnologias para a saúde mental e para a subjetividade de modo geral. “Por um lado, a internet é aberta, por outro, ela introduz relações de poder invisíveis que podem levar a uma submissão ao mercado”, afirmou Nádia Laguárdia (Psicologia/UFMG) na mesa de abertura, destacando as ambivalências da rede. A fala foi reiterada por outras participantes da mesa, que destacaram a importância de pensar os sintomas psicológicos e os recursos para abordá-los na era digital.
Na conferência de abertura, “Algoritmo, ciframento inconsciente e inteligência artificial: que singularidade na era digital?”, o psicanalista Fabian Fajnwaks (Université Paris 8) apresentou uma perspectiva crítica em relação às relações entre algoritmos e indivíduos. Para ele, a digitalização da vida por meio do aprendizado algorítmico seria uma realização de um projeto da ciência moderna: o de desaparecer com o sujeito. Nessa perspectiva, as promessas de tradução de pensamentos em palavras suscitadas pelas tecnologias de interface entre cérebro e computador podem ser enganosas na medida em que reduzem a singularidade do indivíduo a seu cérebro.
Numa perspectiva similar, Gilson Iannini (Psicologia/UFMG) apontou que o atual fascínio com redes neurais e neuronais se insere numa longa história de compreensão da subjetividade a partir de metáforas. Ela foi pensada pelo cristianismo como alma (sopro divino), como fluídos corporais (humores) no contexto da emergência da hidráulica, comparada a um telescópio por Freud e a máquinas de computar por Neumann a partir dos anos 1950. Para o professor, um desafio que se coloca para as neurociências contemporâneas é identificar os limites das metáforas computacionais.
É preciso compreender os efeitos das novas tecnologias na educação e na política
Na mesa denominada “TIC e educação: desafios e inovações”, debates sobre os impactos das novas tecnologias na educação foram avaliados a partir de dados quantitativos e qualitativos. Daniela Costa (Cetic.br) ofereceu um panorama estatístico sobre participação, letramento e uso crítico das TICs por jovens: 85% das crianças e adolescentes são usuários de internet no Brasil, isto é, fizeram algum uso dela nos últimos três meses. Além disso, os dados sugerem que quanto mais velhos, mais os adolescentes tendem a perceber positivamente a internet, assim como confiar em sua própria capacidade de utilizá-la bem.
No mesmo painel, Juliana dos Reis (Educação/UFMG) trouxe uma perspectiva qualitativa em relação as experiências de jovens com a internet. Ela avaliou que os binários online e offline perderam sua eficácia explicativa conforme a socialização online se tornou um fato social total, isto é, um fenômeno que atinge todos os campos da vida social (educação, religião, arte, política, ciência, etc). Para a socióloga, isso se evidencia, por exemplo, na construção de personalidades alterdirigidas, isto é, voltadas para o olhar do outro, que agora invade a experiência privada, segundo um conceito cunhado pela antropóloga Paula Sibilia.
Na mesa seguinte, “Política, ética e tecnologias digitais”, os tópicos centrais foram a desinformação, as bolhas algorítmicas e seus efeitos políticos. Para Marco Aurélio Alves (Filosofia do Direito/UFMG), os fenômenos da plataformização (a partir dos anos 2000) e da personalização (na década atual) prejudicaram imensamente o debate público e reduziram a aceitação às diferenças. “Estamos criando mecanismos de reprodução e proliferação do ódio, não apenas ‘liberando’ ódio pré-existente. Estamos criando uma distopia só para fazer as pessoas clicarem em anúncios”, concluiu, citando a tecnossocióloga Zeynep Tüfekçi. Sobre a desinformação, o professor considerou que “Não existe bala de prata. É uma batalha técnica, jurídica e cultural”.
Também em tom crítico, Marcus Abílio Pereira (Ciência Política/UFMG) analisou a crise da democracia e a cultura digital a partir do que denominou como “as promessas não cumpridas da internet”, nominalmente: reduzir distâncias entre representantes e representados e furar o monopólio narrativo das grandes mídias tradicionais. A mediação desses grandes meios deu lugar à mediação algorítmica do conteúdo, a qual, articulada à descrença nas instituições políticas, favorece o florescimento de discursos autoritários e populistas. Estes se apresentam como autênticos, sinceros e fortes e mobilizam afetos sociais.
Arte, experimentação e a potência criativa da cultura digital
Outro destaque do evento foram as possibilidades de criação, exploração e inovação artística levantadas pelas novas tecnologias digitais. Na performance “notas digitais: música e tecnologia”, o percussionista Charles Augusto e o pianista Rodrigo Miranda apresentaram a peça Sequitur V, do compositor austríaco Karlheinz Essl, na qual o pianista toca um piano de brinquedo e um software produz um acompanhamento eletrônico da melodia em tempo real a partir das entradas do instrumento. Os dois também apresentaram a peça “Reflexos na água”, de Claude Debussy, amparados por uma pulseira eletrônica que permitia produzir diferentes efeitos sobre a melodia a partir dos gestos do usuário.
O Simpósio contou ainda com a mostra Entre-Imagens: Circuito Audiovisual, de curadoria dos professores Roberta Veiga e Eduardo de Jesus (ambos da Comunicação/UFMG), que exibiu curta-metragens da cineasta francesa recentemente falecida Ágnes Varda. O circuito também incluiu a apresentação da série audiovisual “Sou amor”, dos diretores André Amparo e Cris Azzi, com participação do ator Felipe Oliveira, que tematiza questões ligadas a juventude, gênero e sexualidade.
As apresentações trouxeram a tona a ambivalência das novas tecnologias de informação e comunicação citadas na mesa de abertura do evento. Se é inegável que a internet e a cultura digital contribuíram para transformações problemáticas em alguma medida, também é visível que as mesmas inovações sinalizam novos recursos e potências criativas, tanto do um ponto de vista das experimentações artísticas e estéticas quanto das soluções e abordagens para desafios contemporâneos.
Conclusão
“Cultura digital é um termo redundante. A cultura se tornou digital.” provocou Ivana Bentes (Comunicação/UFRJ) durante a mesa “Virtualidade, arte e criação: construções e desconstruções”. Essa declaração não deve ser tomada como a desconsideração das incontáveis práticas e experiências de pessoas e povos nos quais a internet é ausente ou tem uma presença tímida. Devemos vê-la como um convite para refletir de modo aprofundado e multidisciplinar acerca dos impactos da inserção da internet nas mais diversas dimensões das vida de bilhões de pessoas no mundo. Nesse sentido, os debates e apresentações do II Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital forneceram um excelente material para começar.
Se interessou pelos temas do evento e quer aprender mais sobre todos esses temas? Confira nosso post com indicações de autoras que escrevem sobre algoritmos.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Gustavo Rodrigues (Ver todos os posts desta autoria)
É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.