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Tecnologia para além da iniciativa privada: questões de políticas públicas

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9 de julho de 2018

Ao comprar um produto tecnológico, o consumidor comumente atribui a total criação e elaboração da mercadoria pela empresa dona da marca gravada no produto. Contudo, a aplicação de uma tecnologia é consequência da construção de conhecimento e realização de experiências desenvolvidas por diversos atores, dentre eles e assumindo papel ativo, encontra-se o Estado. Mariana Massucato demonstra esta interface no livro O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado. Assim, seja, por exemplo, ao direcionar parte do orçamento público, elaborar projetos legislativos, abrir editais de financiamento à ciência e tecnologia, as políticas públicas efetivadas conjuntamente pelo estado e sociedade civil possibilitam a inovação tecnológica por diversos atores além da iniciativa privada.

Por que são necessárias políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento tecnológico?

A informação sempre foi elemento socioculturalmente importante. Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, com a revolução tecnológica, as possibilidade de transformação de conhecimento e informação em força produtiva e educativa são potencializadas. A economia também fora influenciada por este contexto e o Capitalismo Informacional – termo cunhado por Castels – estabeleceu-se como nova fase do capitalismo. Com o uso da tecnologia, o indivíduo pode efetivar direitos básicos de ordem econômica, social e cultural, como direito ao trabalho, à educação, à vida digna e à liberdade de expressão.

Contudo, o acesso às tecnologias foi, e ainda é, assimétrico, uma vez que reflete o nível desigual de riqueza e escolaridade entre grupos étnicos, etários e de gênero, impedindo pessoas de criar e organizar novas formas de riqueza simbólica e material que sejam mais justas e dinâmicas.

O incentivo ao acesso à informação e inclusão tecnológica é realizado através de políticas públicas, um dos campos em que o Estado, sob a perspectiva da atuação positiva, realiza os direitos assegurados na Constituição. É próprio das políticas públicas efetivar interesses da sociedade e, no que tange à tecnologia, já existem  três fluxos que favorecem a entrada do assunto na agenda governamental, teorizados por John Kingdon:

1. Fluxo Problema: quando o problema em questão fica evidente e ganha destaque, seja pela publicação de indicadores ou pela existência de um momento de crise;

  • O Brasil aparece na 44a posição quando se trata de conectividade e preparo para a economia digital (GCI 2018), entretanto ocupa a 9a posição no ranking de mercado de tecnologia (Abes 2017).

2. Fluxo Alternativa ou Solução: quando existe uma proposta defendida por um conjunto de atores para solucionar o problema em questão.

  • 28 entidades lançaram um manifesto contra a minuta de anteprojeto de lei de criminalização da divulgação de fake news, demonstrando a organização e confluência  do discurso de diversos agente

3. Fluxo Político: quando condições políticas favorecem a entrada ou fortalecimento de uma questão na agenda pública

  • Projeto de lei de proteção de dados pessoais avança ao plenário do Senado (Manchete da Exame 03/07/2018). Esta pauta legislativa demonstra a atenção do Congresso Nacional à assuntos envolvendo tecnologia e internet.

O estado faz política pública sozinho?

Uma análise simplista poderia levar a pensar que o governo deve responder a uma demanda socialmente construída e politicamente determinada elaborando um programa de ação. Essa é uma perspectiva top-down (de cima para baixo) das políticas públicas que “enfatizam a capacidade de decisão e planejamento do governo, sendo que os atores que implementam as políticas são apenas executores das decisões previamente definidas.”

Entretanto, considerando que a implementação de políticas públicas envolve um jogo de negociações, se faz constante a participação  na (re)formulação das políticas pelos chamados “burocratas no nível de rua” – agentes responsáveis pelo contato direto com os cidadãos atingidos pelas políticas e pela concretização do plano de ação. Tais agentes são frequentemente membros de organização da sociedade civil (OSC).

Apesar da aparente aproximação à uma agenda neoliberal devido às parcerias entre Estado e OSC, tais parcerias não mostram “menos Estado”. Na realidade as alianças promovem a estruturação de

“Uma esfera pública mais ampla e mais substantiva: um espaço público verdadeiramente do público.”

Tecnologia social e políticas públicas. Adriano Borges Costa (Org.)

Tais parcerias fortalecem os argumentos de Celina Souza e de sua análise de políticas públicas formadas por redes de atores-chaves que articulam demandas sociais. Dentro destas redes os atores se comunicam, no sentido de promover ou constranger propostas, com a finalidade de decidir os investimentos e recursos a serem mobilizados a fim de efetivar determinado plano de ação. Esta seria uma perspectiva bottom-up (de baixo para cima).

As parcerias com OSCs são também reflexos da emergência do Estado Democrático de Direito por duas razões que merecem destaque. Primeiramente, em um cenário global, a partir da década de 90, pelo grande investimento e crescimento do aparelho estatal – Estado social de direito- a escassez de recursos passou a ser uma questão central ao limitar a capacidade de resposta do Estado às demandas crescentes na área social. Em segundo lugar, no contexto brasileiro, após 1982, diversos setores da sociedade buscaram participação ativa nas agendas democráticas para a construção conjunta de um novo Estado. Logo, a convergência do interesse da sociedade civil e limitações econômicas estatais favorecem a realização de parcerias.

Quais tecnologias devem ser objeto de políticas públicas?

Certos incentivos públicos podem resultar maior concentração de renda ao financiar grandes empresas e não exigir contraprestações para com a sociedade por parte das beneficiadas. O foco das políticas públicas deve observar a maximização do acesso à informação e possibilidade de replicação da tecnologia. As tecnologias sociais, por exemplo, têm essa pretensão. Estas são tecnologias desenvolvidas para a solução de problemas identificados pela própria comunidade e possuem a emancipação do indivíduo como cerne. Para saber mais sobre o conceito e história envolvendo TS acesse aqui.

A título de exemplo, há o Programa 1 Milhão de Cisternas que com apoio governamental e da rede ASA -formada por mais de três mil organizações da sociedade civil de distintas naturezas – construíram mais de 600.000 rurais. O sucesso do programa é justificado por ser uma tecnologia barata e facilmente replicada que contrapõe-se a ideia de combate à seca e propõe a convivência com este fenômeno natural. Com o crescimento do programa, o interesse de atores econômicos e políticos foi despertado, e foi justamente a existência de uma rede formada por diversos agentes em constante diálogo e negociação que possibilitou o prosseguimento do programa.

Dessa forma, as políticas públicas, ao invés de favorecerem a concentração de renda ou de utilização das tecnologias, devem priorizar projetos que possibilitem a criação e retenção do conhecimento tanto pessoal quanto organizacional. Se você se interessa por assuntos envolvendo tecnologia e democracia, acesse aqui o mais recente texto da série #Mulheresnagovernanca sobre bots, fake news e mecanismos de filtragem.

Muitas das ideias aqui contidas e debatidas são resultado da leitura da obra Tecnologia Social e Políticas Públicas. — São Paulo: Instituto Pólis; Brasília: Fundação Banco do Brasil, 2013. A organização da publicação é de Adriano Borges Costa.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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