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Privacidade no Facebook: o que aprender com a Cambridge Analytica

Escrito por

19 de março de 2018

No último 16 de março, o Facebook anunciou publicamente que estava suspendendo as atividades da SCL (Strategic Communication Laboratories) e da Cambridge Analytica do Facebook. Essas mesmas empresas foram apontadas por analistas como essenciais à viralização de fake news, bem como à vitória de Donald Trump nas últimas eleições presidenciais norte-americanas e do Brexit no Reino Unido.

Mas o que está por trás dessa suspensão de desenvolvedores devida a uma violação dos termos de uso do Facebook?

O que podemos aprender sobre a privacidade dos usuários do Facebook com a suspensão da Cambridge Analytica?

Vamos aos fatos oficiais: o que diz o Facebook?

Primeiro, são importantes, segundo a nota oficial, ressaltar alguns fatos:

  • Dr. Aleksandr Kogan (acadêmico russo-americano da SCL/Cambridge Analytica, que atua na Universidade de Cambridge) desenvolveu um app que operava no Facebook, o thisisyourdigitallife, com o objetivo de desenvolver pesquisas acadêmicas;
  • Com o consentimento de mais de 270 mil usuários, o app acessava informações privadas de seus perfis, o que é legítimo segundo os termos de uso do Facebook e as políticas aceitas pelos desenvolvedores de apps para a plataforma;
  • Em 2015 o Facebook foi informado que Aleksandr Kogan havia compartilhado essas informações com Christopher Wylie, da Eunoia Technologies, uma terceira parte, com finalidades comerciais, e não acadêmicas, o que seria uma violação aos termos de uso da plataforma por desenvolvedores;
  • O Facebook então exigiu certificação de que essas informações compartilhadas com terceiros foram destruídas;
  • Recentemente, o Facebook recebeu informações de que SCL/Cambridge Analytica, Wylie e Kogan não destruíram efetivamente essas informações, o que deu ensejo à suspensão desses atores da rede social;
  • É importante ressaltar, para aqueles que acreditam que estamos longe de toda essa confusão, que a Cambridge Analytica também possui escritórios no Brasil (Rua Estados Unidos, 367 Jardim Paulista, São Paulo – SP). E que, a consultora política brasileira CA Ponte, que tinha feito parceria com a Cambridge Analitica para as eleiçõess de 2018, declarou, recentemente, te-lâ suspendido, após a empresa britânica ser acusada pelo Facebook de comprar dados dos usuários da plataforma ilegalmente para uso em campanha.

Privacidade? Entenda como funcionava o thisisyourdigitallife

Para entender a capacidade de obtenção de dados por meio de apps como o thisisyourdigitallife, basta compreender seu apelo: um teste de personalidade, que recompensava financeiramente as pessoas que consentiram em se submeter a ele.

Havia, no entanto, um importante critério de seleção: ter uma conta no Facebook (rede à qual o app estava vinculado), bem como possuir direito de voto nos Estados Unidos. A intenção disfarçada aqui era traçar o perfil de possíveis eleitores para que os dados fossem utilizados em marketing eleitoral, captando informações fossem relevantes para o direcionamento de publicidade (positiva ou negativa).

Os resultados dos testes eram gravados, coletados e, paralelamente, com o consentimento do usuário, obtinham-se dados adicionais de sua conta no Facebook, bem como aqueles disponíveis de seus amigos (lembre-se que, em geral, as opções de privacidade do Facebook costumam ser públicas em sua modalidade default). O teste então buscava estabelecer relações em padrões, de forma a construir predições, extrapoladas para outros usuários da rede com perfis semelhantes. A rede se expandia por meio do acesso às informações públicas dos amigos de quem se submetia ao teste, tornando seu algoritmo cada vez mais preciso e, portanto, valioso.

Segundo informações sobre o funcionamento inicial do app, uma versão beta do teste atingiu mil usuários, que então se expandiu para uma rede de informações correspondente a cerca de 160 mil. Ou seja, a partir de uma pessoa somente que participava do teste o app conseguia ter acesso a mais 160 perfis em média. Assim, não fica difícil entender como o número de usuários rastreados cresceu de forma exponencial.

Veja bem, a tecnologia em si não é algo a se culpar aqui, seja ela do Facebook, seja ela da Cambridge Analytica. Até mesmo o conceito de inimputabilidade da rede corrobora isso. Mas há conflitos flagrantes entre o que o app se dispunha a fazer no papel (pesquisa acadêmica, segundo os termos de uso firmados com o Facebook) e o que realmente foi feito desses dados, conforme vem a confirmar a própria nota pública da rede social, e a posterior suspensão da Cambridge Analytica.

O usuário acreditava estar participando de um simples teste de personalidade, cada vez mais comuns nas redes hoje em dia, e acabava alimentando uma base de dados cuja finalidade se “transformou”: a intenção declarada era realizar pesquisas acadêmicas que buscavam entender comportamentos online, porém acabou servindo para subsidiar iniciativas comerciais, de marketing, e com potencialidades ainda incertas.

O que é a Cambridge Analytica e porque sua atuação é preocupante

De acordo com informações de ex-empregados da Cambridge Analytica e documentos vazados, o número de usuários do Facebook que tiveram suas informações utilizadas indevidamente supera os 50 milhões (número não confirmado pela plataforma); algo significativamente superior aos 270 mil usuários do app thisisyourdigitallife. A partir desses dados, com métricas extremamente detalhadas, a empresa fornece uma análise apurada do perfil de usuários da rede social, permitindo o direcionamento eficiente de anúncios, vídeos, postagens e outras estratégias de campanha, sejam elas oficiais ou não.

A posição do Facebook

Paul Grewal, Vice-Presidente do Facebook, garante que não houve infiltração de sistemas, nem vazamento de senhas ou informações sensíveis de usuários. Segundo a plataforma, o problema foi a violação dos termos de uso e a finalidade da coleta de dados pelo aplicativo.

É natural que a empresa se preocupe com a percepção de confiabilidade de uma rede que, basicamente, se sustenta a partir de informações pessoais. Os usuários precisam se sentir seguros para compartilhar seus dados com a rede, ainda que as opções de visualização só estejam disponíveis para amigos, ou listas selecionadas. Ou seja, acertou o Facebook em suspender os envolvidos de suas plataformas.

Afinal, a atuação da Cambridge Analytica também não passou despercebida por autoridades, seja no Reino Unido, seja nos Estados Unidos. No Reino Unido, é proibida a utilização de dados pessoais sem o consentimento de usuários, ainda mais quando o consentimento é dado com uma finalidade (acadêmica) e utilizada com outra (comercial).

Uma observação: nos Estados Unidos, a empresa foi aconselhada por seu departamento jurídico a não empregar cientistas de dados estrangeiros em suas equipes responsáveis por atuar em campanhas eleitorais (Ted Cruz e Donald Trump). A situação se complica ainda mais à luz das recentes investigações quanto ao envolvimento de russos nas últimas eleições norte-americanas.

Provedores de aplicação não podem se esquivar dessa discussão: é preciso refletir sobre privacidade e o papel de mediação que eles exercem no debate público

Mark Zuckerberg já chegou a afirmar que privacidade não seria mais a norma social. Basicamente, assim como em sua rede social, a opção default do século XXI seria mesmo o compartilhamento de informações, a vida em comunidade, a interação (ainda que online), etc. Na prática, esse discurso enfrentou algumas resistências, principalmente em jurisdições com maiores restrições à capacidade do indivíduo de dispor de seu direito de privacidade.

No entanto, assim como outras redes sociais, a principal plataforma de interação social online hoje em dia também tem corroborado para boas práticas de privacidade online – inclusive executando, há alguns dias atrás, um survey junto a seus usuários (que ficava na página inicial da timeline de login) com o objetivo de entender a percepção deles a respeito da privacidade e segurança oferecidas pelo Facebook.

No que diz respeito à GDPR e os novos patamares de proteção no continente europeu, o Facebook se adiantou à entrada em vigor da normativa e já apresenta ações concretas em favor da liberdade de o usuário escolher quais informações compartilhar e como. Além disso, para seus mais de 2,2 bilhões de usuários, a privacidade e a transparência acerca do que é feito com seus dados pessoais podem ser importantes ativos para o modelo de negócio do Facebook.

Mas como isso se relaciona ao debate público travado nas redes? Os perigos de se utilizar indiscriminadamente dados pessoais de usuários para perfilamento e direcionamento de notícias, postagens e campanhas online está justamente no direcionamento de opinião que pode ser exercido por meio dessas ferramentas. Quem detém o conhecimento e os recursos para executar essas técnicas, consegue efetivamente ditar os rumos de pleitos legislativos, plebiscitos, eleições e outros debates públicos.

É impossível negar o papel intermediador que essas plataformas têm no atual contexto de inserção e inclusão digital A princípio, Zuckerberg e outros provedores de aplicação não queriam interferir na questão do direcionamento de notícias falsas, afirmando que não cabia ao Facebook se envolver com o conteúdo que era publicado em suas timelines. No entanto, a pressão que vem enfrentando esse provedor de aplicação e outros, como Twitter e Google, tem motivado ações ativas para a desabilitação de perfis automatizados (bots de postagem), a preferência pela visualização de posts por amigos e familiares, entre outros.

Data science também em curso no Brasil

Pessoalmente, tive a oportunidade de participar em 2016 como ouvinte de um encontro sobre utilização de big data para perfilamento de usuários no Perestroika (curiosamente, se denominam a “pior escola do mundo”), em Belo Horizonte. O encontro, chamado Beer & Data: o empoderamento através dos dados, foi promovido com a intenção (subjacente) de divulgar os serviços de uma empresa de Porto Alegre, a Cappra Data Science. Naquela época, a representante da empresa e palestrante do dia, Letícia Pozza, afirmou que o chefe da empresa, Ricardo Cappra, contribuiu com as estratégias de utilização de data science na eleição norte-americana, pela campanha do então candidato, Barack Obama. A propósito, ele analisa neste vídeo a “clusterização” de fake news nas últimas eleições norte-americanas, alerta sobre seus perigos de distorção da realidade e conclui pela futura divisão do mundo em dois tipos de seres humanos: as pessoas que conseguem controlar os algoritmos e aquelas que são controlados por eles. Aviso aos lusófonos: a palestra é em Brasília, em português, mas todos os slides estão em inglês.

É o sonho de qualquer publicitário: a partir da análise de muitos e muitos perfis, elaborar estratégias de direcionamento de campanhas que vão bem além do gênero, faixa etária e classe social da “persona”. Controlar. Segundo a apresentação da Letícia no Perestroika, é possível cruzar esses dados de forma geolocalizada, levando em consideração os likes e interesses por páginas e temas específicos de postagem, com o histórico de navegação a partir de cliques no Facebook, por exemplo. Mais ou menos o que Kogan fez com a Cambridge Analytics. É a sofisicação de um rastreamento e perfilamento de consumidores, já que até mesmo a chamada “cauda longa” do gráfico de consumo de determinado produto ou serviço pode ser melhor aproveitado.

A apresentação moderna, recheada de memes, anglicismos, imagens de Beyoncé e design impecável não deixa de incomodar: em nenhum momento problematiza-se a questão da privacidade dos usuários-alvo das pesquisas. A plateia também não se inquietou. Como é bastante comum nos eventos desse tipo, restava o deslumbre. Obviamente, não ajuda o fato de que no Brasil ainda não temos legislação específica para regular o tema, apesar de menções esparsas no Marco Civil da Internet e em seu Decreto Regulamentador. Privacidade não está no topo da pauta de preocupações do brasileiro, suspeito que até mesmo por razões culturais. Impossível fugir do clichê do brasileiro de que não tem nada a esconder e cuja vida “é um livro aberto”; afinal, como se diz por aí, “quem não deve, não teme”.

O que a suspensão da Cambridge Analytica nos ensina?

Moral da história: nunca o debate sobre privacidade e proteção de dados pessoais online foi tão importante e necessário. Estamos em meio a um conturbado processo político no Brasil, de grande polarização, viralização crescente de notícias falsas que disputam repertórios de eleitores e potencializam discursos de ódio, e com diversas propostas de monitoramento e até mesmo remoção de conteúdo online. Uma sociedade tão mediada por dispositivos eletrônicos e suas respectivas aplicações, desde o grupo familiar de WhatsApp até a timeline de postagens no Facebook, precisa ter maior apreço pela origem, veracidade, confiabilidade das informações que ali circulam. Mais que isso, é preciso sempre ter em mente: por que você foi exposta a elas e a quem interessa que elas circulem?

Se você quiser saber mais sobre privacidade e proteção de dados, confira aqui um Bytes de Informação específico sobre o tema!

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Fundador e membro do Conselho Científico do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em regime de cotutela com a Université libre de Bruxelles, na Bélgica. É também Professor de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN (Centro de Direito Internacional). Foi estagiário docente dos cursos Relações Econômicas Internacionais, Ciências do Estado e Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado, é também membro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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