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Porque a área cultural deve lutar também pela neutralidade da rede

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14 de agosto de 2017

Trabalhar com cultura, principalmente a independente que busca novos modelos de parceria e fomento, nos exige ser também ativistas em várias causas. O impacto da cultura digital nos modelos de divulgação e distribuição de artistas e projetos, permitiu uma maior democratização do acesso aos bens culturais, ampliando assim a formação de público e o consumo de arte. Estas são as grandes vantagens vistas tanto por produtores quanto por artistas. Mas, como qualquer outra conquista que permite uma maior autonomia e descentralização, a democratização do acesso à bens culturais a partir da internet está ameaçada. E é por isso que nós, da área cultural, devemos sim lutar pela neutralidade de rede.

Mas primeiro, o que é “neutralidade da rede”? O conceito define o tratamento da navegação dos usuários na internet pelas operadoras de telecomunicações e determina que todos sejam tratados com igualdade, sem que haja benefício somente para uns na hora de navegar ou que haja limitação para clientes específicos. É garantir um ambiente sem discriminações. Este princípio vem garantir uma internet neutra, onde as operadoras de telecomunicações não podem fazer distinção de tráfego com base em interesses comerciais, ou seja, privilegiar alguns sítios na internet, redes sociais ou aplicativos, nem tampouco privilegiar a transferência de determinados pacotes de dados em detrimento de outros, que são as informações que enviamos ou recebemos quando estamos navegando.

Se a internet nasceu a partir da neutralidade da rede, por que ela está em risco hoje? Porque, para as empresas de telecomunicações, a quebra da neutralidade trata-se de uma oportunidade de ampliação de negócios e lucro. As empresas querem que os consumidores paguem mais para ter sua navegação “facilitada” ou “personalizada” e querem ter permissão para favorecer parceiros comerciais. Nesta realidade, quem tem mais dinheiro terá uma internet melhor, e quem não tem, terá um serviço deficiente, com qualidade menor e acesso a um conteúdo restrito e direcionado, conforme tais parcerias se estabeleçam. É esta a internet que queremos?

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que entrou em vigor a partir do dia 23 de junho de 2014, foi uma das grandes conquistas na área de direitos digitais no Brasil e estabeleceu o serviço de acesso à internet como um serviço de interesse público essencial ao exercício da cidadania. E cidadania é para todxs. É importante considerar que a neutralidade deve ser vista também e principalmente, como uma opção de política pública voltada para a inclusão digital e que recrimina o tratamento discriminatório na rede. Mas, infelizmente, só a lei não basta já que diariamente observamos várias violações, mesmo após a regulamentação da lei – Decreto 8.771 – que ocorreu somente em abril de 2016.

Relatos recorrentes de violações ao Marco Civil da Internet podem ser vistos regularmente nos serviços de telecomunicação, tanto na oferta de banda larga móvel como na prática do zero-rating – ofertas de acesso gratuito a determinados aplicativos – associada a franquias de dados extremamente reduzidas e ao bloqueio do acesso. Essas práticas aprofundam as desigualdades, desrespeitam a liberdade de expressão, o livre acesso à informação e conhecimento, o direito à privacidade, a livre escolha, a manutenção de ambiente competitivo, a inovação e principalmente ferem o reconhecimento do acesso à Internet como direito universal e como serviço essencial.

Lutar pela neutralidade da rede é garantir simplesmente que a rede deve ser igual para todxs, sem diferença quanto ao seu uso. É um direito básico do consumidor, como bem explicado pelo IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, em uma analogia com a energia elétrica, também prestada através de uma rede, onde não se faz diferença entre o uso de uma geladeira, um microondas e um televisor. A rede não aceita um aparelho e rejeita outro, ou seja, não faz discriminação de uso. O mesmo deve valer para a internet.

Se este cenário já é ruim o suficiente para a nossa navegação diária e descomprometida na rede, imagine então para projetos e artistas que podem normalmente destinar à comunicação e divulgação dos seus projetos, somente 10% de uma verba já escassa, que mal cobre os custos gerais de produção? Imagine o impacto desta quebra de neutralidade na divulgação e consumo de bens culturais, principalmente para expressões artísticas que abordam questões de gênero, sexualidade, raça ou credo. Imagine as novas realidades financeiras de investimento em comunicação, e, por consequência em corporações da mídia, para o lançamento, divulgação e sustentabilidade de uma campanha de financiamento coletivo de quarenta e cinco dias realizada por artistas, grupos ou coletivos iniciantes. Imagine as chances reais de alcance da divulgação dos nossos trabalhos através dos nossos sítios na internet. Como iremos aparecer e sobreviver dentro desta desleal negociação que se tornará a internet?

A partir destas preocupações é que eu, uma produtora cultural formada em artes visuais, passei a me aventurar na defesa dos direitos digitais e, consequentemente, da neutralidade da rede. Minha motivação é nada menos do que a sobrevivência – tanto do meu trabalho quanto dos artistas em quem acredito.

A boa notícia é que realmente esta luta é de todxs e sim, muitos já estão lutando. Não foi difícil encontrar outros artistas, produtores, apreciadores das artes e ativistas com as mesmas preocupações. Não foi difícil nos organizarmos para então espalhar estes alertas e mobilizarmos possíveis ações, seja de modo online ou offline. Não demorou muito para a formação de uma rede diversa e complementar em torno do tema. Assim como não demorou muito para a conscientização de que todas as áreas devem lutar juntas, pois o impacto da quebra de neutralidade da rede é geral. Mas nada disso dará resultado se os usuários  – você, eu e todos – não aderirem à luta. Mas como?

Um bom exemplo de formação de uma rede diversa, aberta e independente, com atuação nacional na defesa pelos direitos digitais, é a Coalizão Direitos Na Rede. Diante de um cenário político de ameaças constantes e crescentes às nossa liberdades e direitos na Internet, vários grupos organizados decidiram juntar forças e lançar a campanha #InternetSobAtaque. O perfil de atuação diferenciado das organizações e ativistas participantes permite que as campanhas atuem diretamente em várias frentes. Alguns grupos agem diretamente no poder executivo em Brasília, esclarecendo deputados e senadores sobre os impactos das propostas de leis, que muitas vezes surgem apressadas e sem pesquisa. É lá que a maioria das brigas por nossos direitos se concretizam. E é lá que normalmente ainda perdemos a batalha. Outros grupos atuam no despertar do interesse da grande mídia pelo tema, levando a “tradução” e conscientização necessária para o cidadão. É nesta etapa final que nós usuários da rede devemos participar, discutindo e espalhando para as nossas bolhas os impactos destas decisões nos nossos direitos.

Foi assim que fizemos frente à possível parceria entre o Governo Federal e o Free Basics (antigo Internet.org), iniciativa do Facebook com empresas de telefonia para viabilizar acesso à Internet gratuitamente para determinadas partes da rede. Mas por quê uma iniciativa que garantiria acesso gratuito a várias comunidades é nociva à democratização da rede? Primeiro, porque não se trata de inclusão digital. Com a propaganda de “acesso gratuito à internet”, mesmo para quem não tenha pacote de dados, o Free Basics garante na realidade acesso somente à timeline do Facebook e à porções limitadas da internet, incluindo 37 sites ou aplicativos parceiros, priorizando conteúdo estrangeiro e não local. Isto estimula a concentração da internet em um único aplicativo/plataforma, cujo lucro principal está na coleta de dados de cada usuário e na publicidade vendida à partir dos dados gerados. Graças a participação e pressão das organizações e ativistas, o acordo foi negado aqui no Brasil quando debatido no Congresso. Para quem quiser saber mais a respeito do Free Basics, o grupo Global Voices lançou agora em Julho uma pesquisa com estudos de casos sobre a implementação do aplicativo em regiões da Africa, Asia e América Latina. Os resultados comprovam que o Free Basics não ajuda a “conectar as pessoas à internet e melhora suas vidas” como afirma o slogan da campanha do projeto.

Quem trabalha com divulgação dos seus projetos e eventos no Facebook, entende o problema da concentração de uso da Internet apenas nesta plataforma. A reportagem “Milhões de usuários de Facebook não têm ideia que estão usando a Internet”, divulgada em fevereiro de 2015, mostra que os novos usuários da rede, em países em desenvolvimento, não usam e muitas vezes não sabem que existem navegadores, que têm esse nome por permitir nos levar a diferentes caminhos e conhecimentos pela rede. Quando perguntados se o Facebook é a Internet, mais da metade dos usuários brasileiros que participaram da pesquisa disseram “sim”, o que transforma a “internet” em um jardim murado, privado, com regras nada transparentes ou democráticas, onde valem as opções da empresa acerca do que pode ser publicado ou não.  Sem falar que trata-se cada vez mais de um espaço caro para quem decide divulgar efetivamente alguma coisa, principalmente a partir de um aumento de postagens patrocinadas e da exigência de um investimento maior para dar visibilidade a conteúdos em páginas e perfis do Facebook.

Por exemplo: como garantir a publicação e a permanência dos nossos projetos e conteúdos, muitas vezes considerados controversos já que se trata de arte, em uma plataforma que em 2015 deletou uma postagem do MinC (Ministério da Cultura) que trazia uma fotografia de um casal de Índios Botocudos em que uma índia estava com o dorso nu?

Infelizmente este método de censura não é exclusivo do Facebook.

A plataforma Youtube, pertencente ao Google, acaba de impor uma idade mínima de 18 anos para a visualização de uma imagem onde duas pessoas se beijam (foto promocional do novo single “Flutua“, onde o artista Johnny Hooker aparece beijando Liniker). O mesmo aconteceu no Facebook, que bloqueou as publicações patrocinadas da foto por conter “conteúdo sexual”.  Em 2016, o Instagram censurou a foto da atriz Maria Alice Vergueiro em nome do que considera uma “experiência confortável” para os usuários. Outro caso recente é o da cantora Simone Mazzer, que teve seu acesso bloqueado e sua fanpage retirada do ar no Facebook por postar a foto da capa do seu álbum (um desenho que contem seios à mostra).

Os exemplos são muitos e não param de acontecer.

Outro ponto importante que me levou a defender a neutralidade da rede foi entender que o diferencial dos meus projetos culturais, baseados na formação de rede entre os artista e suas circulações, algo que hoje é tão facilitado pela internet, só é possível porque existe neutralidade da rede. Antigamente, realizar uma parceria entre artistas do Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte ou concretizar uma turnê independente e colaborativa por 21 estados, por exemplo, só seria possível após muita troca de informações e viagens caras de visitação e conhecimento do cenário cultural de todos os locais. Hoje, esta pesquisa, mapeamento e contato podem ser feitas através de alguns cliques, nascendo assim um projeto incrível que será desenvolvido a partir de reuniões via Skype e conversas via Whatsapp.

No Brasil, a mesma companhia que fornece conexão à internet é responsável também pelo serviço de telefonia fixa. Toda vez que precisamos realizar uma conferência via Skype, ou outro serviço semelhante, para tratar de projetos, acertar detalhes ou simplesmente trocar ideias, não usamos mais o telefone tradicional. Esta opção de serviço faz com que as companhias de telecomunicações percam dinheiro – e como se trata do mesmo fornecedor, as companhias poderiam muito bem desfavorecer o serviço de conexão a ponto de tornar o seu uso inviável, o que faria com que a telefonia fixa volte a ser a melhor opção, certo? Errado! E isso se deve a neutralidade da rede.

Outra reclamação frequente na internet é a prática conhecida como “traffic shaping” em planos de internet fixa. Ela consiste na redução da velocidade após o usuário utilizar serviços “pesados”, como vídeo sob demanda ou download de torrents (protocolo de troca de dados, geralmente utilizado para baixar filmes). Por mais que as operadoras neguem este tipo de prática, todos nós já nos sentimos “desencorajados” com a demora ao acessar plataformas independentes de streamming ou baixar arquivos pesados, por sermos remetidos num passe de mágica aos tempos da internet discada.

Defender a neutralidade da rede é garantir a diversidade cultural, o livre acesso aos produtos culturais independentes, à inovação dos projetos e sua divulgação. É conseguir ampliar as fronteiras artísticas e culturais além de uma plataforma. É lutar pelo acesso do artista ao seu público. E do público à sua arte. É acima de tudo garantir o direito de se fazer arte e de ser visto – por quem queira e não por quem eles deixarem.

Texto escrito por Janaina Spode, com contribuições de Carolina Dalla Chiesa e Leonardo Foletto, do baixacultura.org. Editoração de Christiane Spode.

Janaina Spode é formada em Artes Visuais, tendo desenvolvido sua pesquisa acadêmica sobre crítica e filosofia da Arte. Desde 2004 atua na área de gerenciamento de projetos e Leis de Incentivo, além da produção e gestão de diversos projetos culturais independentes. Através da Casa da Cultura Digital Porto Alegre, atua também como hackerativista nas lutas pelos avanços políticos para reforçar os Direitos Humanos no mundo digital.

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