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Para além dos bloqueios do WhatsApp: suspender provedores de aplicação pode ser um caminho sem volta

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5 de junho de 2017

Desde a última sexta-feira (02/06), o Supremo Tribunal Federal tem ouvido argumentos relacionados ao bloqueio de aplicativos como o WhatsApp, em audiência pública convocada pela Ministra Rosa Weber e pelo Ministro Edson Fachin, relatores da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, respectivamente. As audiências públicas são um importante mecanismo de diálogo da corte superior com a sociedade, a fim de melhor elucidar as questões em julgamento.

Já foram feitas exposições de membros da Polícia Federal, sociedade civil, Ministério Público, Comitê Gestor da Internet, academia, associações representativas de classe, institutos de tecnologia, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, entre outros. O objetivo é mesmo conhecer as diferentes perspectivas sobre um mesmo tema: a possibilidade de suspensão dos serviços de provedores de aplicação em território nacional, no âmbito do Marco Civil da Internet. Mais informações sobre a programação, aqui.

O que diz o Marco Civil da Internet

Até hoje, foram várias as decisões judiciais que determinaram o bloqueio do WhatsApp no Brasil. Todas elas, no entanto, foram rapidamente reformadas pelos tribunais superiores de suas respectivas jurisdições. Os bloqueios são justificados pelos magistrados segundo o artigo 12 do Marco Civil da Internet, que diz: “sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11”.

A exegese dos artigos 10, 11 e 12  já foi exaustivamente tratada por postagens diversas, seja aqui neste blog, seja por outras referências sobre o tema no Brasil, como o ITS-Rio e o Internet Lab. Nesse contexto, vale mais a pena lembrar de outros argumentos que corroboram a limitação de juízes para realizar esse tipo de bloqueio, econômica, social e juridicamente.

A economia dos bloqueios: porque essa é uma medida inútil

Efetivamente, o que ocorreu nos primeiros minutos de bloqueio do WhatsApp no Brasil? Houve uma migração em massa de usuários para outras aplicações, como o Telegram e o Signal, em números bastante significativos. Usuários menos avessos a soluções tecnológicas também descobriram rapidamente como utilizar VPNs (Virtual Private Networks), e assim continuar a trocar mensagens com seus contatos.

O mercado tecnológico também tem menos barreiras à entrada, o que costuma acarretar ciclos mais rápidos de inovação, competição, substituição e criação de novos nichos de atuação para provedores de aplicação. É por isso que startups costumam apresentar trajetórias ascendentes tão rápidas e acentuadas. A ingerência do poder judiciário nessa dinâmica, sem o devido preparo judicial (exercício interpretativo do Marco Civil da Internet, por exemplo), ou contextualização técnica, pode prejudicar – e muito – a livre iniciativa dessas empresas.

Esse é um mercado altamente dinâmico, que se adapta e reage rapidamente às adversidades e barreiras a ele impostas, sejam elas judiciais, como uma decisão de bloqueio em território nacional, sejam elas administrativas – basta lembrar que bastou um dia para que o atual Ministro da Ciência, Tecnologia Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, voltasse atrás em sua decisão de permitir franquia de dados na internet fixa.

Estão querendo violar a comunicação privada de usuários? Os provedores respondem com criptografia ponta-a-ponta. Querem proibir a introdução de novos modelos de negócio para o transporte individual (e particular) de passageiros? Mercado e sociedade se relacionam cada vez mais próximos, por meio soluções agressivas de marketing e regulação tarifária competitiva em relação aos serviços tradicionais. Personalidades públicas se sentem incomodadas com postagens críticas em redes sociais e pedem a remoção desses conteúdos, ou a identificação de seus usuários? O efeito Streisand acaba sendo mais prejudicial a sua honra subjetiva do que os posts originalmente proibidos.

A quem queremos nos equiparar internacionalmente?

Você sabe quais países praticam o bloqueio de provedores de aplicação de forma generalizada em seus territórios? Coreia do Norte, Cuba, Irã, Arábia Saudita, Rússia, Turquia, Vietnã, Sudão e China são alguns deles (veja outros aqui). Além disso, o Conselho de Direitos Humanos da ONU já condenou expressamente o bloqueio do acesso à internet, por considerar que esse tipo de mecanismo viola direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o direito à comunicação e o livre acesso à informação.

No Brasil, as críticas aos bloqueios não poderiam ser diferentes. O próprio Marco Civil da Internet prevê, em seu artigo 3º, “a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal”. Além disso, o dispositivo normalmente utilizado para justificar os bloqueios, do artigo 12, pertence à Seção II da Lei, “Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações Privadas”. Veja bem, “da proteção”. Os artigos aqui contidos visam a proteger o usuário, não coibir suas ações online.

Um caminho sem volta?

Sim, permitir o bloqueio desses provedores de aplicação, de forma generalizada e sem um controle específico por órgãos especializados nessa temática pode abrir perigosos precedentes para o Brasil.

Ainda que sem provas, mas com a convicção de quem quer um Estado cada vez mais policialesco e vigilantista, o Ministério Público Federal e órgãos com poder de investigação no país, que muitas vezes demandam a violação da comunicação privada dos usuários nesses aplicativos, acreditam que atuam em defesa da ordem social, pois visam a investigar supostas redes criminosas e seguir uma trilha de provas cada vez mais tecnológica e informatizada. Os juízes, por outro lado, veem no bloqueio uma forma adicional de coagir provedores a cumprir decisões judiciais muitas vezes tecnicamente impossíveis, ou até mesmo juridicamente contestáveis – não é à toa que todas as decisões de bloqueio foram reformadas.

Ou seja, a onda de bloqueios e a interpretação errônea dos artigos do Marco Civil da Internet vão na contramão do que almeja a sociedade civil, o mercado, os órgãos especializados em direitos humanos, a academia e a própria exegese da lei. Bloquear aplicativos utilizados por 91% dos usuários mobile no Brasil é, no mínimo, desconsiderar o efeito social e econômico que essa decisão judicial pode ter. Os equívocos jurídicos, no entanto, parecem estar prestes a serem sanados no âmbito das duas ações no STF (ADI nº 5527 e ADPF nº 403). Aguardemos.

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Fundador e membro do Conselho Científico do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em regime de cotutela com a Université libre de Bruxelles, na Bélgica. É também Professor de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN (Centro de Direito Internacional). Foi estagiário docente dos cursos Relações Econômicas Internacionais, Ciências do Estado e Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado, é também membro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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