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Neutralidade de rede

16 de maio de 2016

Em 23 de abril de 2014, foi sancionada, pela Presidente da República, Dilma Rousseff, a Lei nº 12.965, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet. Entre as disposições apresentadas pelo Marco Civil, a que gerou mais debate e discussões foi, sem dúvida, a neutralidade da rede.

O que é a neutralidade da rede?

A neutralidade da rede é um conceito simples, porém com ampla margem para interpretação e aplicação. Em termos gerais, a neutralidade da rede prevê que os provedores de acesso (ex.: Net, GVT, Oi, Velox) não devem discriminar, nem priorizar pacotes de dados, devendo trata-los de forma isonômica. O provedor deve tratar esses pacotes de dados sem priorizar qualquer website ou aplicativo.

Por exemplo, não poderia um provedor alocar mais velocidade para o YouTube do que para o Vimeo por razão de contrato entre o provedor e o primeiro desses serviços de streaming de vídeo. Além disso, de acordo com o conceito de neutralidade da rede, os provedores não podem oferecer planos com conteúdo específico, como um pacote que oferece acesso somente a e-mails ou redes sociais, semelhante aos pacotes de TV por assinatura, nos quais o usuário paga mais para ter maior variedade de conteúdo (canais).

É importante ressaltar que pacotes diferenciados de velocidades não ferem a neutralidade da rede. Eles apenas oferecem conexões mais rápidas ou mais lentas para o consumidor, porém não ocorre uma discriminação de conteúdo.

Tampouco é considerada violação à neutralidade a prática de Quality of Service (QoS), segundo a qual os administradores técnicos da rede fazem ajustes específicos para garantir o bom funcionamento da Internet por meio do gerenciamento do tráfego de dados. Isso ocorre porque o QoS não discrimina conteúdo (de onde ele vem e quem o emitiu), mas apenas a natureza do pacote.

Dessa forma, prioriza por exemplo pacotes de dados relativos à vídeos (sem distinguir se são do YouTube ou do Vimeo) em relação a pacotes de e-mails, uma vez que a qualidade dos serviços de vídeo depende muito mais de um fluxo constante de pacotes do que a comunicação por e-mail. Um atraso de meio segundo faz enorme diferença para um vídeo, mas quase nenhuma para um e-mail.

Por isso, a neutralidade total da rede ainda pode ser considerada uma utopia, já que é impossível para os provedores de acesso tratar todos os dados da mesma forma, já que não há infraestrutura para isso.

Há pelo menos três formas de discriminar um conteúdo ou aplicação específica na internet: bloqueando, reduzindo sua velocidade, ou cobrando um preço diferente pelo acesso àquele conteúdo.

No primeiro caso, o bloqueio é feito basicamente em países com regimes ditatoriais, como China e Coreia do Norte, por exemplo, que impedem o acesso de seus cidadãos a conteúdos que consideram inoportunos. Já a redução da velocidade é utilizada pelos provedores para inutilizar recursos que consideram concorrentes, como o Skype, que substitui uma ligação internacional de custo elevado para o consumidor.

A cobrança diferenciada de preços, por outro lado, é visível no Brasil nos planos de telefonia móvel. O programa Tim WhatsApp, por exemplo, que oferece acesso grátis aos usuários desse aplicativo e ao Facebook, teoricamente feriria o princípio da neutralidade, já que permite ao consumidor usar somente aquele conteúdo. Essa prática é chamada de zero-rating e é atualmente centro de intenso debate sobre sua legitimidade ou não, uma vez que apesar de ferir a neutralidade de rede, é também uma ferramenta eficaz na inclusão digital e na expansão do acesso.

No Marco Civil da Internet, a neutralidade de rede está garantida pelo artigo 9º, com incisos detalhando adiante possíveis exceções. O artigo é dependente do decreto que regulamenta em maiores detalhes o regime da neutralidade de rede, com o objetivo de reduzir a insegurança jurídica. Confira aqui mais informações sobre o decreto que regulamentou o Marco Civil da Internet.

Importância da neutralidade da rede

As redes de comunicação podem ser construídas em uma arquitetura aberta (end-to-end), ou em uma arquitetura fechada (core-centered). Como exemplo de arquitetura fechada, temos a televisão, em que somente as empresas podem escolher o conteúdo que o usuário final irá consumir. Ainda que seja possível mudar o canal, o consumidor não pode influenciar, diretamente, aquilo que está vendo. Já como exemplo de arquitetura aberta, tem-se a internet, que desde o seu nascimento foi construída baseada em uma arquitetura end-to-end, o que permite maior interação entre usuário e empresas provedoras de conteúdo.

Com a neutralidade da rede, o consumidor tem acesso total à internet, podendo buscar informação, cultura e entretenimento em diversos sites. Caso sejam oferecidos serviços com restrição na navegação, como querem as empresas, o indivíduo estará sujeito aos sites oferecidos pelo plano do provedor de acesso que possui. Sem a neutralidade da rede, a possibilidade de alienação do usuário se torna ainda mais fácil, já que este estará navegando de acordo com o desejo da empresa que lhe fornece o plano.

Além disso, o maior exemplo da importância da neutralidade é o surgimento das empresas startups (empresas recém criadas, geralmente associadas à internet). Como a internet é uma arquitetura aberta, qualquer pessoa com uma ideia e conhecimentos de programação pode lançar um aplicativo para smartphones. A neutralidade da rede faz com que não exista um conglomerado de empresas guiando os interesses da indústria e do consumidor. Sem a interferência de empresas, o mercado cumpre seu conceito mais básico: lei da oferta e procura. Caso o aplicativo lançado agrade, sua procura irá aumentar e, consequentemente, fará com que a empresa cresça e lucre mais.

Gigantes das telecomunicações têm lutado contra a neutralidade, porque veem sua interferência reduzida na gestão do mercado e na escolha feita pelo consumidor.

Problemas gerados pela neutralidade da rede

É fato que não há estrutura física no mundo para permitir uma neutralidade de rede “total”. Muitos provedores de acesso já afirmaram ferir a neutralidade da rede, pois não possuem estrutura suficiente para tratar todos os dados com isonomia. Além disso, muitas empresas argumentam que a neutralidade atrapalha o mercado, já que não permite aos clientes escolherem pacotes de serviços com os sites que mais acessam, elevando o custo médio do serviço e dificultando o acesso por uma parcela da sociedade que não pode pagar o preço de uma conexão plena.

Polêmicas sobre a neutralidade da rede no Brasil

Como já foi citado anteriormente, a neutralidade da rede foi o ponto mais polêmico do Marco Civil da Internet. O atual líder da Câmara, deputado Eduardo Cunha, em 2014 um “simples” deputado peemedebista, foi o principal opositor do projeto, chegando a afirmar: “primeiro vamos votar pela rejeição do marco civil; se não for rejeitado, vamos discutir a emenda”.

Representando as grandes empresas de telecomunicações, Eduardo Cunha e o PMDB lutavam contra a neutralidade da rede. Segundo o site da Câmara dos Deputados, “a emenda apresentada por Eduardo Cunha exclui os serviços de internet da regra geral da neutralidade e libera a contratação de pacotes com condições especiais para quem quiser conteúdo diferenciado – só redes sociais, só vídeos.”

Cunha ainda chegou a afirmar: “querem ‘comunizar’ a internet, obrigando a fornecerem de forma ilimitada a infraestrutura para qualquer tamanho de trânsito, com preço igual para todos. Ou seja, o consumidor paga o que não usa para os outros usarem. Isso é neutralidade? Ninguém está pensando no pobre consumidor. É como se a gente permitisse a utilização de luz a vontade e todos pagassem a mesma conta. Quem usasse ar condicionado e chuveiro elétrico pagasse o mesmo de quem tem casa popular”. Como é perceptível, Eduardo Cunha confundiu a velocidade fornecida pelo provedor de acesso e a isonomia no tratamento de dados.

Neutralidade da rede nos Estados Unidos e na Europa

Nos Estados Unidos, a Federal Communications Comission (FCC) aprovou, em 2015, novas regras relacionadas à neutralidade da rede. Em resumo, a decisão da FCC apresenta semelhança com as disposições do Marco Civil brasileiro, tendo como principais pontos:

  • Provedores de acesso não poderão bloquear o acesso a aplicações, conteúdo e serviços, salvo se esses forem ilegais ou prejudiciais à segurança da rede;
  • Provedores de acesso não vão poder discriminar ou degradar o tráfego de dados com base em critérios específicos como o tipo de conteúdo, aplicação ou serviço;
  • Provedores de acesso não podem dar prioridade para o tráfego de determinada aplicação em detrimento de outra, mesmo caso uma aplicação pague por essa prioridade.

O Parlamento Europeu, por sua vez, aprovou em 2014 legislação que garante a neutralidade da rede. Em sua essência, essa legislação não difere muito da brasileira, nem da norte americana, e garante tratamento isonômico no transporte de dados por parte dos provedores de acesso. Assim como o Marco Civil brasileiro, a legislação europeia também apresenta exceções para determinadas situações: ataques cibernéticos, tráfego congestionado e ordens judiciais são situações de exceção que permitem a violação da neutralidade da rede no continente.

Sobre os autores:

Matheus Rosa é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É membro do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual (GNet-UFMG).
Victor Barbieri Rodrigues Vieira é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É membro do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual (GNet). Tem como áreas de interesse em pesquisa: Direito da Internet, Direito Internacional e Propriedade Intelectual.

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