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“Li e aceito”: além de entregar seus dados

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17 de agosto de 2016

Em discussão estimulada por recente lançamento de aplicativo no Brasil, já tratamos, no blog, sobre a previsão, nos termos e condições de uso, da entrega de dados, pelos usuários, a grandes empresas, como Facebook, Google e Microsoft. Os problemas do consentimento a esses termos, contudo, não se relacionam apenas à privacidade e à proteção de dados. Apesar de o Marco Civil da Internet estabelecer que o aceite aos termos de uso deve ser livre e consciente e da pressão por transparência que as empresas sofrem, o usuário muitas vezes também desconhece a existência, nos termos e condições de uso, de cláusulas de eleição de foro.

A eleição de foro

A eleição de foro trata-se de pacto entre as partes – o usuário e o Twitter, por exemplo – pelo qual fica definido o foro, ou seja, o tribunal competente para julgar quaisquer disputas que possam surgir entre elas. A eleição de foro é admitida como expressão da autonomia da vontade das partes e se relaciona à validade do contrato, à sua interpretação e a seus efeitos.

A sujeição das controvérsias a determinada jurisdição, expressa no contrato na cláusula de eleição do foro, pode manifestar-se em dois sentidos: privativo e atributivo. No primeiro, o acordo retira de uma jurisdição o poder de tratar uma causa e a delega a outra. Já no segundo, é definida a jurisdição para um determinado tribunal, inicialmente sem competência para tratar a lide.

Vários são os exemplos de cláusulas de eleição de foro no âmbito da Internet. Na Declaração de Direitos e Responsabilidades do Facebook, são eleitos os tribunais da Califórnia:

“Você resolverá qualquer reivindicação, causa de ação ou disputa (reivindicação) decorrente de ou relacionada exclusivamente à esta Declaração ou ao Facebook no tribunal distrital americano, para o distrito do norte da Califórnia, ou um tribunal estadual localizado no condado de San Mateo, e você concorda em submeter-se à jurisdição pessoal de tais tribunais com o propósito de pleitear todas essas reivindicações.”

Já os termos de Serviço do Google contemplam a hipótese de a eleição de foro não ser aceita em determinados países, mas também definem a jurisdição de tribunais norte-americanos, como regra geral:

Da mesma forma, caso as leis em seu país não permitam que você concorde com a jurisdição e foro dos tribunais de Santa Clara, Califórnia, EUA, então jurisdição e foro locais serão aplicados às disputas relacionadas com estes termos. Nos outros casos todas as reclamações decorrentes de ou relacionadas com esses termos ou Serviços serão litigadas exclusivamente em tribunais estaduais ou federais da Comarca de Santa Clara, Califórnia, EUA e você e o Google autorizam a jurisdição pessoal nesses tribunais.

Desse modo, por tais previsões nos termos de uso, as empresas buscam modificar as regras gerais de competência, impondo ao usuário o foro que mais as beneficie como condição de uso do serviço. Na prática, o usuário, ao afirmar seu consentimento, estaria concordando em adjudicar qualquer conflito com essas grandes empresas nos Estados Unidos. Na França, a cláusula de eleição de foro dos termos do Facebook chegou aos tribunais em conflito entre a empresa e o professor Frederic Durand.

Frederic Durand vs. Facebook

Em 2011, Frederic Durand publicou em seu perfil no Facebook tela “A origem do mundo” (1866), de Gustave Coubert. O Facebook considerou que o conteúdo de nudez violava a declaração de direitos dos usuários e suspendeu a página de Frederic. No mesmo ano, Durand ajuizou perante os tribunais franceses uma ação contra o Facebook France, alegando afronta contra sua liberdade de expressão e requerendo duplamente a reativação da conta e o pagamento de indenização no valor de 20 mil Euros por danos morais, por considerar-se vítima de censura “humilhante, brutal e injusta”.

Em sede de defesa, o Facebook, ao longo de todo o processo, sustentou que a cláusula de eleição de foro presente nos Termos de Uso, com os quais Frederic Durand havia concordado, excluiria a competência dos tribunais franceses. Nesse sentido, o pacto atributivo de jurisdição obrigaria as partes a adjudicarem eventuais conflitos nos tribunais da Califórnia, em prejuízo de qualquer outra jurisdição.

Os tribunais franceses consideraram como abusiva a cláusula de eleição de foro apontada pelo Facebook, no contexto da relação de consumo com o usuário, por reconhecerem o grande desequilíbrio que ela causaria entre as partes no que tange ao acesso à justiça. Isso porque, enquanto o Facebook dispõe de milhões de usuários na França e mantém escritório e representação legal no país, Frederic Durand não tem condições de litigar no estrangeiro. Nesse sentido, os tribunais não acolheram a defesa do Facebook e mantiveram a jurisdição francesa para o caso, por considerarem que a cláusula de eleição de foro implicaria em negativa de acesso à justiça pelo usuário.  

No Brasil

No Brasil, a eleição de foro é admitida pela legislação, com fundamento na autonomia da vontade. O Novo Código de Processo Civil reconhece o efeito de tais cláusulas de atribuir a competência exclusiva ao tribunal selecionado. O pacto, contudo, está sujeito a controle material e formal da justiça brasileira, que deverá atender aos requisitos de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos. Nesse sentido, a cláusula de eleição de foro apenas poderá ser considerada válida caso não seja abusiva em relação a uma das partes litigantes ou aos efeitos do litígio. Nenhum acordo atributivo de jurisdição, portanto, terá aplicabilidade no Brasil se gerar desequilíbrio entre as partes e prejudicar o acesso à justiça por uma delas.

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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