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Fluxos internacionais de dados e os limites do Estado

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2 de outubro de 2017

Estado e território

O sistema internacional, desde o século XVII, estrutura-se sobre as ideias de soberania dos Estados e dos povos, bem como no exercício de poder limitado a um território. As fronteiras implicam não apenas na própria afirmação dos Estados, mas também em um compromisso mútuo de, em regra, não interferência nos demais. Essa divisão, contudo, não é – nem pode ser- hermética. Há, para tanto, a previsão de mecanismos específicos de harmonização, cooperação e expressão extraterritorial.

Nesse contexto, a princípio, as decisões dos tribunais domésticos e as leis nacionais aplicam-se apenas nos limites territoriais definidos para o Estado a que se vinculam. A base legal de uma obrigação ou a decisão que a define restringem-se ao exercício do poder, a não ser por mecanismos que confiram eficácia a eles além das fronteiras. Aqui encontram-se tratados de mútua cooperação internacional, bilaterais, regionais e globais, acordos de reciprocidade, e ainda regras internas definidas em lei. Essas ferramentas também traduzem tentativas de o Estado, limitado ao seu território, alcançar fatos, atos e pessoas (naturais e jurídicas), para além dele.

Transferência internacional de dados

A Era marcada pela Internet revela crescente necessidade de expansão – senão superação –  de fronteiras para efetivação da tutela jurídica. Os fluxos internacionais de dados cada vez mais intensos, céleres e de natureza diversa despertam discussões que envolvem não apenas os elementos do próprio Estado, mas também suas relações internacionais, direitos dos usuários sobre a proteção dos dados e ainda interesses mercadológicos, que correspondem ao exercício transnacional do poder econômico.

O acesso, de autoridades estatais, a dados localizados, por empresas privadas, em servidores no estrangeiro é tema que permeia as discussões sobre o exercício do poder estatal, os critérios e instrumentos que viabilizem, por exemplo,o cumprimento de ordens judiciais. A eficácia das decisões para além do território é tema sensível da dinâmica econômica, social e, em última análise, da ordem jurídica internacional.

No Brasil, apesar de o art. 11 do Marco Civil da Internet determinar a aplicação da lei brasileira a situações que tratem de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de dados ocorridos no país, o cumprimento de decisões para entrega de dados não recebeu previsão específica. Assim, fica submetido a normas gerais do ordenamento interno, relativas ao processo transnacional, bem como a tratados de cooperação mútua, tanto bilaterais quanto regionais, no contexto do Mercosul. O projeto de lei sobre proteção de dados pessoais que tramita no Congresso Nacional desde 2016 não inova ao disciplinar esse aspecto da transferência internacional de dados, deixando a cargo dos “instrumentos do direito internacional”.

A discussão nos Estados Unidos

Embora seja um tema da governança global, o debate sobre o enforcement das decisões norte-americanas para obtenção de dados armazenados em servidores no estrangeiro tem chamado a atenção. Grandes empresas, como a Google e Microsoft, enfrentam processos nos quais, em esfera federal, discutem a entrega ou não de dados e informações com base em ordens judiciais americanas, quando eles estão armazenados em outros países.

O tema já chegou à Suprema Corte americana, por meio de ação envolvendo a Microsoft e o Departamento de Justiça dos EUA. As autoridades estatais sustentam a necessidade de ter acesso aos dados, ainda que eles não se encontrem territorialmente localizados no país. Como descreve David Kravets, a questão é se os EUA têm direito a dados de servidores no estrangeiro, em quais circunstâncias e por quais meios.  A Suprema Corte, no entanto, ainda não se manifestou sobre o caso.

Outra empresa que tem se envolvido em batalhas judiciais sobre a questão é a Google. Suas posturas mais recentes, contudo, foram interpretadas como uma aceitação do cumprimento de ordens envolvendo esse tipo de dado. Isso porque a empresa deixou de recorrer contra mandados de entrega dos dados, de modo a sugerir uma adesão maior ao sistema de compliance, com a entrega das informações requisitadas ou, pelo menos, sem recurso posterior às decisões. Apesar disso, ainda se observa tensão entre a empresa e atores estatais, que acusam-na de deliberadamente espalhar os dados por todo o mundo com a finalidade de desafiar as ordens do judiciário.

A observância às decisões, bem como a necessidade de reformular a lei de compliance para as empresas, são discutidas no Judiciário americano, mas ainda não foram pacificadas. A polêmica também se encontra nas tentativas de outros países de terem acesso a esses dados e toca os contextos essenciais do Estado, do modo como chegou à atualidade, sobre o exercício de poder transfronteiriço e a não interferência de um Estado soberano em outro.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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