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Fake news: iniciativas legislativas não devem violar garantias fundamentais

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5 de março de 2018

As informações falsas divulgadas pelas redes, ou fake news, como têm sido conhecidas, são um legado das mídias sociais e um fenômeno a ser enfrentado por diversos setores da internet. A circulação de notícias inverossímeis, a propagação de desinformação e de propaganda enganosa são alguns dos problemas internacionalmente reconhecidos  que afetam não apenas o Brasil, como se pode perceber a partir dos desafios enfrentados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, entre outros países. A ONU, em declaração conjunta a outras instituições, já declarou a possibilidade de fake news servirem à violação de direitos humanos. No mesmo documento, a Organização recomenda que qualquer ação ou programa de combate a essas notícias ou propagandas não prejudique outros direitos fundamentais, com destaque para a liberdade de expressão. Não é esse, contudo, o caminho que as discussões têm tomado no Brasil.
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Criminalização das fake news

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Desde 2017, é possível observar que o debate sobre as notícias falsas toma contornos de criminalização e recrudescimento moral na sociedade. Algumas discussões, ainda que promovidas de modo multissetorial, concentraram na figura do Estado o controle sobre as manifestações de opinião e o compartilhamento de informações na Internet. Elas giram em torno desde a possibilidade de envolvimento das Forças Armadas para repressão até projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional para tipificação de delitos criminais de circulação de informações falsas. Mas o que são notícias falsas? Quem julga o que é falso e o que é verídico? Essas são questões que devem ser seriamente enfrentadas em qualquer debate sobre ‘fake news’.
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Potencial anteprojeto seria apresentado pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso

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Nos últimos dias, circulou uma minuta de anteprojeto que seria de autoria da assessoria do Senado e apresentado na reunião do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional desta segunda-feira, dia 5 de março. Embora o Conselho tenha negado a iniciativa de propor qualquer APL, como se observou no teor das discussões transmitidas em tempo real, o texto merece comentários, desde já, por propor a criação de dois delitos – um penal e outro eleitoral – relativos à circulação de notícias falsas, alterando o Código Penal e o Eleitoral, além do Marco Civil da Internet.
A minuta que, conforme os conselheiros, envolveria apenas um “relatório de estudo”, também prevê obrigações de remoção de conteúdo de terceiros, por empresas de Internet sem necessidade de autorização judicial. A minuta de anteprojeto, que circulou entre várias entidades do setor de comunicações e Internet, também estabelece a possibilidade de que usuários avaliem e controlem a confiabilidade das informações publicadas e postadas nas redes, e formulem reclamações sobre o conteúdo que considerarem inverossímil ou falso.  
Em virtude da sensibilidade do tema das ‘fake news’ e dos efeitos que eventual lei aprovada nesse sentido produziria para o pleno exercício de direitos e liberdades civis e para a estabilização dos regimes legais de responsabilidade consagrados pelo Marco Civil da Internet no Brasil, o Instituto de Referência em Internet e Sociedade apresenta sua contribuição técnica, de modo a esclarecer muitos dos pontos atacados pelo alegado relatório de estudos (vertido em minuta de Anteprojeto de Lei) e manifestar-se contrariamente à tramitação de iniciativas legislativas que minem garantias já estabelecidas pela Constituição e leis infraconstitucionais aos ambientes de Internet no Brasil.
Assim como no Projetos de Lei de n. 6812/2017 e 7604/2017 (Dep. Luiz Carlos Hauly/PSDB-PR); 8592/2017 (Dep. Jorge Côrte Real – PTB/PE), 9554/2018 (Dep. Pompeo de Mattos – PDT/RS), 9533/2018 (Dep. Francisco Floriano – DEM/RJ), o Anteprojeto que gerou discussão na CCS representa  uma tentativa de criminalização da divulgação de fake news no Brasil. Vem em um contexto reconhecido como de afronta aos direitos dos usuários e à natureza civil das redes, que se destaca no MCI e o tornou uma referência internacional em termos de legislação sobre internet.
A minuta, na visão do IRIS, revela absoluto despreparo do legislativo para lidar com o fenômeno social da internet e a tentativa de utilizar aspectos criminalizadores/punitivos para suprir lacunas de acesso à informação e uso da internet presentes no Brasil. É a ausência de políticas públicas e legislativas para o combate ao abismo digital e à exclusão digital (digital divide e digital exclusion) que deveriam ser objeto de discussão do CN, e não a maior restrição do uso das redes.
A discussão travada por parlamentares brasileiros está na contramão de todas as preocupações e temáticas internacionais na atualidade, como as recentes resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o direito de acesso à Internet como direito humano; da União Internacional de Telecomunicações e da UNESCO, e consensos alcançados pelo Fórum de Governança da Internet em matéria de políticas e direitos dos usuários.
Da mesma forma, recorrendo a um argumento absolutamente contextualizado no caso brasileiro, parece ser desperdício de tempo e de parcos recursos institucionais, em tempos de crise financeira e orçamentária no Estado brasileiro, que congressistas se voltem para propostas legislativas que criminalizem a Internet, suspendam garantias civis, e frontalmente violam a Constituição e tratados de que o Brasil é parte. Da mesma forma, atacam a vigência do Marco Civil, que constitui o mais importante instrumento normativo em políticas de governança, direitos dos usuários e responsabilidade de empresas de Internet no Brasil, sendo modelo para outros países no mundo.
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Inadequações do presumido APL

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Inconstitucionalidade

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Paralelamente, ficam evidentes as inadequações dos projetos de lei, seus efeitos violadores de normas internacionais e constitucionais em matéria de liberdades civis e  suas disparidades técnicas em matéria legislativa. Assim como os projetos anteriores, o APL, que aparentemente seria apresentado na CCS como iniciativa legislativa, abre margens para censura do ambiente online, o que contraria garantias fundamentais como a liberdade de expressão (art. 5º, IX, CR/88), bem como a do acesso à informação (Art. 5º, XIV,CR/88R), que também ganharam destaque no Marco Civil da Internet. Segundo a legislação que regula a internet em nosso país, o “uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão” (art. 2º), bem como a “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal” (art. 3º).
Ainda no plano constitucional, previsões normativas que coíbam a veiculação de informações por quaisquer meios contrariam a maneira como a comunicação social deve ser encarada no Brasil: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição” (art. 220, CR/88). As diversas externalidades negativas refletidas dos projetos ofendem liberdades civis, na medida em que envolvem incentivos à autocensura por parte dos usuários e crescente degradação de liberdades civis pelos provedores de aplicação. Além disso, propostas de natureza eleitoral abrem possibilidade para governos que visam a silenciar seus oponentes, a reduzir os espaços de opiniões políticas desfavoráveis à situação em pleitos eleitorais e a suprimir meios legítimos de manifestação do pensamento.
Nos Estados Unidos do século XVIII, por exemplo, o Sedition Act tinha como objetivo justamente a defesa do governo federal frente às declarações falsas (1798). Enquanto se buscava defender a segurança nacional, suprimiam-se votos de pessoas que discordavam com o governo de situação, violando o direito de liberdade de expressão previsto pela Primeira Emenda. Essa legislação foi rapidamente revogada, quando Thomas Jefferson se tornou presidente. Confira mais informações aqui. Mais de dois séculos depois, os Estados Unidos e a sociedade internacional travam hoje em dia o mesmo tipo de debate, por meio de um presidente que diariamente classifica grande parte do jornalismo norte-americano como fake news e busca criminalizar suas atividades investigativas. Nenhuma semelhança com o caso brasileiro seria mera coincidência, como será visto mais adiante.
A via punitiva adotada no APL, negado como tal pela CCS, busca incluir as fake news entre os crimes contra a paz pública do Código Penal – na mesma categoria da formação de quadrilha, por exemplo. Isso contraria também o princípio da legalidade. Incluído entre os direitos fundamentais (art. 5º, XXXIX), ele representa a determinação da Constituição de que a definição dos crimes e cominação das penas seja a mais específica possível. Na proposta que veio a público, apesar de haver um conceito legal para fake news, aparecem conceitos manifestamente  vagos, contrariando a melhor técnica legislativa em matéria penal, campo em que se endereçam penas e medidas de privação de liberdade.  
O que seria comprometer “gravemente” a saúde, a economia ou a segurança nacionais? Quais os limites técnicos para “interesse público”? E mais profundo: A quem caberia dizer a verdade? É preciso também lembrar que, do ponto de vista filosófico e processual, ao longo da história, foram “a verdade” e sua apuração tomados como pretextos para arbitrariedades e violações de direitos fundamentais, especialmente no que se refere a grupos minoritários. O uso dessas expressões vagas é, nesse sentido, inadmissível em uma ordem democrática, na qual as atividades legislativas e judiciárias são balizadas pela legalidade.  
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Marco Civil da Internet

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Outra questão controversa trazida pelo suposto Anteprojeto de Lei diz respeito à alteração do Artigo 19 do Marco Civil da Internet. O dispositivo, que diz respeito à responsabilidade dos provedores de aplicação, consolida no Direito nacional a abordagem “judicial notice-and-takedown”, na qual o intermediário só se torna responsável por um determinado conteúdo, conjuntamente com o autor, se se recusar a removê-lo diante de uma ordem judicial. Esta doutrina se baseia no princípio da inimputabilidade da rede, traçado desde o Decálogo do Comitê Gestor da Internet. O princípio reconhece a natureza descentralizada e end-to-end da Internet de forma a reduzir ao máximo a imputabilidade do intermediário que apenas transmite ou conduz a informação gerada pelos extremos da rede.
O projeto em circulação visa alterar o Artigo 19 do Marco Civil ao remover a condicional “somente” do texto “[…] o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente[…]”. Dessa forma, a legislação passaria de uma exclusão de todas as outras possibilidades de responsabilização para a abertura para todas elas.
Além disso, o pretenso Projeto faz modificações ao artigo 18, criando uma série de exigências para o provedor de aplicação como adições na política de privacidade e até mesmo na programação da aplicação, que passaria a ter a obrigação de desenvolver e disponibilizar uma funcionalidade que permita a denúncia das fake news, presumidamente de forma parecida com àquela atualmente usada para outras denúncias quaisquer. Além de todos os outros vícios, a minuta ainda peca em introduzir texto normativo redundante ou desnecessário, e excessivamente interventor em questões de caráter técnico, de negócios e de arquitetura das aplicações.
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Conselho Consultivo visa a lidar com fake news nas próximas eleições

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Em 2017, foi criado Conselho Consultivo pela Presidência do TSE, com o objetivo de lidar com a tendência crescente de fabricação de notícias em períodos eleitorais, especialmente aquelas propagadas por meio de aplicações online (redes sociais, apps de mensagem, etc.), que supostamente interfeririam no debate político. Bastante criticado por conter em sua composição membros da Polícia Federal, do Exército e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin),  o Conselho também é composto por representantes do Poder Judiciário e da sociedade civil.
Coincidentemente, na mesma data que seria a apresentação do APL, termina o prazo para que esse Conselho edite e publique suas resoluções, que visam a orientar questões relativas à propaganda política e internet nas próximas eleições. O Conselho conta inclusive com o conhecimento acumulado pelo FBI, na esperança de  minimizar o efeito polarizador e de manipulação das discussões políticas online.
O Código Eleitoral já previa situações em que notícias caluniosas, difamatórias e injuriosas seriam punidas por meio de legislação específica (artigos 324, 325 e 326). Por que não incluir também previsões legais a respeito das notícias falsas, ou como lidar com elas? Qual a razão de delegar essas diretrizes a um Conselho?
Muito provavelmente, o receio dos especialistas e até mesmo do Poder Judiciário Eleitoral é o mesmo que assola quem critica a polêmica minuta: leis aprovadas no calor do debate, sem ampla participação da sociedade civil, de estudiosos do tema e, o que é mais importante, que não refletem a realidade transnacional, plural e diversa das tecnologias de informação e comunicação hoje em dia.
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Provedores de aplicação já implementam medidas contra fake news

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Por sua vez, provedores de aplicação como Facebook e Twitter já implementam mudanças em suas plataformas com o objetivo de minar o alcance das fake news. Segundo especialistas, um dos maiores receios é a automação de comentários por meio de perfis falsos (em geral, bots), com o objetivo de ampliar artificialmente a visibilidade de determinados posicionamentos ou notícias. Atinge-se parte substancial da população, que está online, de forma a influenciar o debate político para algum lado da balança. É o que pesquisa da FGV afirma ter ocorrido com a polêmica em torno do Queermuseu.
O Twitter, por exemplo, prometeu este ano remover perfis e postagens movidas por bots automatizados. Já o Facebook afirmou que deve priorizar, em sua seleção algorítmica de posts, a visualização de postagens de amigos, familiares e grupos. A intenção é “despolitizar” a rede e tornar as discussões mais “locais”.
Resta saber o que aplicações como o WhatsApp farão sobre o tema. No Brasil, onde há mais de 120 milhões de usuários ligados ao app, a discussão sobre as fake news que circulam entre grupos privados e lista de usuários também é relevante. Haveria como verificar os rastros de uma fake news nessa aplicação? Não representaria tal medida invasão da privacidade dos usuários, já que o WhatsApp é fortemente marcado pelo caráter privado das mensagens trocadas e as protege por mecanismos de criptografia?
Obviamente, as fake news representam uma ameaça ao debate público e político, seja no Brasil, seja internacionalmente. No entanto, estratégias governistas, notadamente aquelas marcadas por ofensivas políticas e partidárias, não devem impor medidas de controle, verificação de informações, ou, mais radicalmente, de remoções forçadas daquilo que se define por notícias falsas sem um amplo debate e a observância de garantias civis, políticas e processuais nessas investidas.
Com ou sem mudanças nessas plataformas, uma coisa é clara: não haveria como excluir os grandes provedores de aplicação desse debate. Grande parte da interação entre usuários nessas redes sociais é também fonte de informação, debate político, posicionamentos civis, entre outras características dessa temática.
Também é preciso lembrar que exigências de conformidade e vigilância para combater as fake news, como aquelas do possível APL, podem representar dificuldades para o desenvolvimento de empresas nascentes de base tecnológica – startups – que eventualmente se proponham a desenvolver aplicações de conteúdo de caráter social. Se já é difícil, para empresas como Facebook e Google, combater a disseminação massiva de fake news, para as startups a tarefa de observância dos requisitos legais propostos torna-se praticamente inviável ou no mínimo, extremamente desencorajante.
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Combate efetivo às fake news e universo político brasileiro

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Nas entrelinhas, a polêmica gerada sobre o papel da CCS e o possível APL divulgado demonstra que o debate sobre fake news ainda tem muito o que ser amadurecido no cenário nacional. Ainda, que existe um caminho a não ser seguido: o de que iniciativas legislativas – supostas ou concretas – sobre fake news silenciem não apenas usuários e empresas de Internet, mas jornalistas e blogueiros independentes, ou mesmo fragmentem mídias sociais.
Nenhuma regulação, em qualquer esfera de Poder, deve servir para exonerar (mais ou menos sutilmente) parlamentares com trajetória política duvidosa e repletos de condenações nas esferas civil, penal, administrativa, trabalhista e tributária de suas responsabilidades legais e sociais, com a blindagem de redutos eleitorais contra notícias que poderiam ser alegadamente consideradas “dissimuladas”, “inverossímeis” ou “falsas” segundo a lei (e que passariam a ser objeto de remoção forçada de sites, redes de relacionamento social e plataformas de comunicação, distante dos olhos do cidadão). Da mesma forma, se convertido em lei, o suposto anteprojeto fortalece os grandes conglomerados tradicionais de mídia e imprensa no Brasil, criando mais uma divisão entre mundo online e offline.
Como contribuição ao debate que, conforme a reunião da CCS, se estabelece no Legislativo, o IRIS reforça sua posição a favor dos direitos dos usuários estabelecidos na ordem constitucional brasileira. O uso da internet no Brasil deve observar liberdades civis de expressão, manifestação de pensamento e informação. O combate a fake news, legado inevitável das mídias sociais, não pode ser encarado com viés simplesmente punitivo.
A pauta parlamentar deveria se ocupar, na verdade, de medidas para combate da exclusão digital, do desenvolvimento de políticas de educação para o uso da internet voltadas para a cidadania e efetiva participação democrática por meio dos recursos online. Além disso, conforme posicionamento de organizações internacionais sobre o assunto, estratégias de diversificação das mídias sociais e de incentivo a à pluralidade de fontes de informação são as medidas a serem promovidas que efetivamente serviriam para reduzir os efeitos, sem dúvidas negativos, da desinformação e notícias falsas. Em sua missão institucional, o IRIS rechaça qualquer retrocesso e institucional levado a cabo por iniciativas legislativas dissimulando o objetivo real de filtragem, bloqueios, censura e controle de informações, além da imposição de obstáculos à livre circulação das ideias, de manifestação do pensamento e de opiniões críticas nos ambientes da Internet.

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