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Dois Dedos de Prosa sobre Criptografia, Direitos Humanos e o Caráter Moral do Trabalho Criptográfico

Escrito por

7 de agosto de 2017

Mais um texto da nossa série de convidados externos, desta vez escrito pelo Grupo de Pesquisa em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Pernambuco com a colaboração dos pesquisadores André Lucas Fernandes, André Ramiro, Paula Côrte Real e Raquel Saraiva.

A problemática da segurança irrestrita nas comunicações eletrônicas vem tomando espaço no debate público, justo por se tratar de mecanismo que envolve, de forma crescente, parcela majoritária da sociedade. A criptografia, técnica mais disseminada de segurança neste cenário, vem contribuindo aos contornos humanitários e sociais da própria matemática, conferindo nova dimensão, sobretudo, ao que entendemos por direitos humanos, mostrando-se um tópico-chave nas recentes discussões sobre Governança da Internet.

“A criptografia envolve o estudo de técnicas matemáticas para assegurar informação digital, sistemas e computação distribuída contra ataques de adversários” [1]. Já a encriptação, uma das técnicas estudadas pela criptografia, pode ser definida como “o problema de como duas partes podem se comunicar em sigilo na presença de um espião” [2].

Fato é que, com a crescente dependência de meios tecnológicos à comunicação e, ainda, com o alargamento e aprofundamento dos meios de vigilância eletrônica estatal, a encriptação (muitas vezes associada ao anonimato) termina por se tornar ferramenta necessária à preservação, em especial, da privacidade e da liberdade de expressão.

Com as novas e diferentes formas de expressão permitidas pela Internet ou comunicações eletrônicas de forma geral, deu-se início, também, a novos meios de interferência na privacidade dos usuários.  São faces de uma dualidade intrínseca ao advento de avanços tecnológicos. Enquanto entes criam novas oportunidades de inovação e comunicação, também passam a dar origem à produção, disseminação e armazenamento de uma quantidade exponencialmente maior de dados privados. Esse processo, ao gerar um banco de dados da sociedade civil de forma indiscriminada, relativiza o que entendemos e vivemos em termos de privacidade; além de dar margem à perseguição política, inaugura-se o que vem sendo chamado de arquitetura ou capitalismo de vigilância. A Segurança da Informação, portanto, vem à tona (ideia ainda não suficientemente disseminada por entre os dinâmicos estratos da população), tornando-se um aspecto fundamental para a garantia do direito à confidencialidade das informações pessoais e, além de disso, à preservação de direitos humanos.

Declarações de caráter diplomático e internacional normalmente levam a  problemáticas, principalmente no que se refere a estruturas originalmente transnacionais, como a Internet, frente à variedade de disposições nacionais acerca do uso criptografia, sobretudo quando direitos humanos estão em jogo.

Isso porque alguns países possuem legislações que limitam ou mesmo proíbem o uso de encriptação. Por exemplo: no Paquistão, a encriptação é banida; na Índia, os provedores de acesso à Internet devem restringir o nível de encriptação para indivíduos, grupos e associações a chaves de tamanho de 40 bits em algoritmos de chave simétrica ou equivalentes; já em Cuba, para se utilizar de ferramentas de encriptação, é necessária uma autorização do governo; a Turquia exige que as empresas que comercializam ferramentas de encriptação forneçam ao governo cópias das chaves de encriptação antes de oferecer as ferramentas aos usuários; enquanto isso, França, Reino Unido e Espanha, Estados tidos popularmente como referenciais democráticos ocidentais, podem requerer às empresas que estas disponibilizem as chaves de encriptação ou que decriptem os dados, para não falar das mais recentes disposições do Estado chinês sobre a regulação do uso de VPNs (Virtual Private Networks), alargando ainda mais o difamado “Grande Firewall da China”.

Sendo assim, entidades internacionais como a Anistia Internacional e a UNESCO emitiram relatórios, ambos em em 2016, sobre a questão do uso de ferramentas de encriptação de comunicações e como elas têm a função de atuar na defesa da sociedade civil contra os abusos a direitos, principalmente em países de democracia restrita. Nas palavras de David Kaye, Relator Especial para Liberdade de Expressão das Nações Unidas:

“Encriptação e anonimato, ferramentas fundamentais à segurança online nos dias de hoje, proporcionam aos cidadãos meios de proteger a privacidade, empoderando-os para navegar, ler, desenvolver e compartilhar opiniões e informações sem interferência, bem como permitem a jornalistas, a sociedade civil, organizações, membros de grupos étnicos e religiosos, aqueles perseguidos por conta de suas orientações sexuais ou identidades de gênero, ativistas, pesquisadores, artistas e outros  a exercitar o direito à liberdade de opinião e de expressão.”

Porém, é possível falar em efeitos colaterais aos regimes antidemocráticos. Articulações da sociedade civil para promoção de direitos humanos vêm constantemente desenvolvendo ferramentas que contribuem para a proteção das comunicações e do anonimato, levando as PETs (Privacy Enhancing Technologies) a um novo patamar de uso, antes restrito ao uso mercadológico e estatal.

Muitas das ferramentas de encriptação tradicionais, utilizadas por populares provedores de aplicação, não são desenvolvidas por grandes companhias, mas, sim, por especialistas e comunidades de engenheiros da sociedade civil. É o caso, por exemplo, do protocolo de criptografia Signal, desenvolvido pelo Open Whisper Systems, do The Onion Router (Tor), para a promoção do anonimato, construído a partir da ideia de que usuários podem ajudar-se como forma de “cobrir” um ao outro contra a vigilância estatal; ou da ferramenta TrackMeNot, uma tentativa de ofuscar o mapeamento de padrões possíveis sobre os interesses de usuários a partir da captura de metadados.

São, ao mesmo tempo, causas e consequências do que nos resta de uma Internet livre e aberta, a qual possibilita a inovação e permite que o desenvolvimento tecnológico (e criptográfico) se volte ao bem público, para além do interesse mercadológico. A realidade constantemente renovada com o avanço científico desafia a manutenção de direitos humanos, moldando valores, relações de poder e lançando luz às diversas relações entre tecnologias e sociedades, sobretudo em um cenário internacional.

Mas há uma outra questão que merece destaque nesse debate, com o qual diretamente se relaciona, e ela se refere ao papel sociopolítico exercido pelos desenvolvedores de tecnologias de encriptação.

Sabe-se que informação é poder. Como outros métodos tecnológicos, a criptografia tem o condão de reconfigurar arranjos de poder, já que ela possibilita que comunicações e informações sejam ou não disponíveis e para quais pessoas. A encriptação, a depender da forma e em que aplicações é implementada, tem a capacidade de empoderar ou fragilizar cidadãos, aproximando-os ou afastando-os da informação pública, do exercício do direito à privacidade, da liberdade de expressão e, até mesmo, uns dos outros.

Pensando nisso, o criptógrafo americano Phillip Rogaway sustenta que a criptografia se torna, assim, um instrumento político e tem, intrinsecamente, uma dimensão moral. As revelações sobre o programa de vigilância da NSA apontaram para um certo fracasso no trabalho criptográfico, pois este permitiu que as comunicações da sociedade civil passassem frágeis e vulneráveis pelas interceptações ilegais. Isso se deu em razão do trabalho e do desenvolvimento no âmbito da criptografia terem sido operados de forma distante da função moral da atividade científica, percebendo-se politicamente neutra, fechada em resoluções de quebra-cabeças matemáticos, com pouca reflexão sobre o impacto dessas tecnologias nas pessoas que as utilizam.  

No pós-guerra, as relações entre a ética, ciência e sociedade foram levantadas como forma de impulsionar um novo modelo de desenvolvimento tecnológico, tendo em vista as consequências desumanas do uso de técnicas científicas para a criação de armas de guerra. Exemplo disso é o trabalho do físico Robert Oppenheimer, o qual estava sempre reconsiderando, durante e após seus anos de Projeto Manhattan, as implicações éticas do trabalho que chefiou. O impulso inicial deste pós-guerra, contudo, apenas foi incorporado por uma pequena minoria de cientistas e engenheiros, os quais passaram a enxergar seus trabalhos com valores intrinsecamente sociais.

O fundamento moral do trabalho criptográfico deve ser levado em conta quando da elaboração de políticas de implementação de criptografia, bem como quando de seu desenvolvimento e pesquisa. Pois, como dito, o desenrolar da encriptação das comunicações tem reflexos nas relações de poder e terminam por moldar a sociedade. Os criptógrafos talvez não tenham sido responsáveis diretos pelo desenho inicial da infraestrutura da Internet, pelas próprias interceptações das comunicações ou pela vigilância em massa. Mas são eles , dentre outros agentes, que possuem a capacidade de reverter o rumo de violações à privacidade e à liberdade de expressão, arquitetando meios justos de assegurar direitos humanos aos que fazem uso de comunicações eletrônicas. Ou, como sugere Rogaway,

“Com algumas exceções, os cientistas atômicos que trabalharam no desarmamento não foram os mesmos indivíduos que construíram a bomba. Seus colegas – companheiros físicos – o fizeram. Criptógrafos não tornaram a Internet um instrumento de vigilância total, mas seus colegas – cientistas da computação e engenheiros – o fizeram. E criptógrafos tem alguma capacidade de ajudar.”

A criptografia é, portanto, ferramenta fundamental à proteção dos direitos humanos. As políticas em torno de sua implementação têm consequências sociais diretas, interferindo no exercício de direitos fundamentais e na configuração da sociedade. A forma como isso é encarado irá conferir certo viés no moldar do futuro pretendido, futuro este intrínseco ao caminhar tecnológico e às formas de comunicação. Um novo olhar, portanto, deve ser lançado sobre o uso da criptografia, dando-lhe o impulso para operar em favor da sociedade, lançando uma dimensão ética ao desenvolvimento científico diário.

Texto produzido pelo Grupo de Pesquisa em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Pernambuco, com a colaboração dos pesquisadores André Lucas Fernandes, André Ramiro, Paula Côrte Real e Raquel Saraiva.


[1] Tradução livre. No original, lê-se: “modern cryptography involves the study of mathematical techniques for securing digital information, systems, and distributed computations against adversarial attacks”. KATZ, Jonathan; LINDELL, Yehuda. Introduction to modern cryptography. Second Edition. Boca Raton. CRC Press, 2015, p. 3.

[2] Tradução livre. No original, lê-se: “the problem of how two parties can communicate in secret in the presence of an eavesdropper”. BONEH, Dan; SHOUP, Victor. A graduate course in applied cryptography. Draft edition, December, 2016.

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