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Descolonização do saber científico: contra-hegemonia no acesso ao conhecimento

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22 de janeiro de 2018

Uma das preocupações frequentemente alardeadas quando se estuda o estabelecimento de uma ordem técnico-científico-econômica internacional hodierna, é a possibilidade de se configurarem novas formas de dominação, por meio das tecnologias de informação e comunicação – TIC. Essas disputas por domínio econômico e tecnológico estariam ainda mais presentes em áreas de fronteira, como Internet das Coisas (IoT) e inteligência artificial, por exemplo, que prometem revolucionar as relações sociais, de trabalho, jurídicas, entre outras aplicações. No entanto, o que se observa frequentemente nesses mercados é a reprodução de velhos modelos de desigualdade, já presentes há muito tempo nas relações entre Norte e Sul global. O regime de proteção à propriedade intelectual, especialmente os direitos de autor, é sintomático de uma lógica metrópole-colônia, de obsolescência legal frente às novas tecnologias.

Nesse contexto, não seria o papel do Direito de prover marcos regulatórios suficientemente abrangentes para permitir inovação científica e tecnológica, principalmente no direito autoral, em concomitância com a proteção dos direitos dos agentes verdadeiramente inovadores, que investem em, conduzem pesquisas e disponibilizam para o mercado essas criações? Afinal, por que o regime vigente de direitos autorais não condiz com a tecnologia atual e nossas necessidades de acesso ao conhecimento?

É preciso pensar em termos desenvolvimentistas

Se essas práticas de proteção à propriedade intelectual, impostas geralmente por países do Norte Global em agendas de negociação de foros como a Organização Mundial do Comércio e, mais recentemente, negociações do TRIPS-plus, para alimentar uma retórica protecionista em detrimento de uma prática desenvolvimentista, de fomento à acessibilidade e ao saber científico no Sul Global, por que não se apropriar também de mecanismos de contestação dessas iniciativas? Se apropriar desses discursos é também uma forma de dar maiores condições de alcance para seus efeitos, na esperança de estabelecer o terreno para o futuro de uma governança tecnológica mais democrática do saber, especialmente em meio às tecnologias disponíveis atualmente. Desenvolvimento, não custa lembrar, é o princípio basilar e fundamental da atual Rodada Doha, a Rodada do Desenvolvimento.

Níveis de proteção além do que é efetivamente necessário

No que diz respeito aos mecanismos de controle e bloqueio de acesso ao saber científico e tecnológico nas tecnologias de informação e comunicação, como quebra da neutralidade de rede, proteção de dados científicos em bancos de dados de acesso restrito, gestão de nomes de domínio de forma a bloquear sites contraventores, acessibilidade e políticas de restrição à inovação, há uma assunção nacional desses valores hiperprotetivos também por países do Sul Global, como é o caso do Brasil. Por que proteger, por 70 anos para além da vida do autor, sendo que o Acordo TRIPS nos exigia 50?

Há que se questionar, inclusive, se faz sentido 50 anos de proteção, após a morte de um autor, para então promoção de suas obras ao domínio público, frente às novas tecnologias de criação disponíveis, à redução dos prazos dos ciclos de inovação e a necessidade de maior difusão das obras criativas para países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo. Ademais, a falácia da relação imediatamente direta entre proteção e inovação tem sido cada vez mais desconstruída, relativizada e desmitificada.

Inovação também nos meios de exercício de influência e de poder

A era da informação global nos convida a pensar sobre novas formas de influência e de poder. Existe hoje uma ampliação dos conceitos de poder tecnológico e científico, também nas relações intermediadas pela rede mundial de computadores, especialmente no que diz respeito ao acesso ao conhecimento em sua forma eletrônica (artigos, periódicos, livros e outras publicações especializadas). Para além das retóricas tradicionais de justificação para desobediência e inobservância de direitos de propriedade intelectual, especificamente os direitos autorais, é preciso considerar também as diversas formas e maneiras por meio das quais o ambiente regulatório informacional, das tecnologias de informação e comunicação, também influenciam Estados e demais atores subnacionais, produtores de conhecimento, na adoção de medidas políticas e comportamentos específicos. Em outras palavras, por que não questionar as novas formas de colonização do saber empreendidas pelo Norte Global, por meio de restrição a obras de cunho científico e tecnológico?

Uma realidade perversa: deficiências estruturais perenes e históricas

O exercício de poder por meio desse tipo de escolha acadêmica, científica e tecnológica, de desafio aos velhos regimes de proteção aos direitos autorais, tem grandes potencialidades nas relações internacionais, especialmente quando explorada não para constranger e coagir, mas para para definir, entender e medir as políticas estatais de forma a ganhar atenção, aceitação social e transformação efetiva. Quando apropriados pelo Sul Global, e devidamente contextualizados de acordo com suas limitações de infraestrutura, tecnologia e capacidade econômica, essas legítimas exceções aos direitos de propriedade intelectual podem fazer parte da resposta contemporânea ao mapeamento de demandas, subsidiando políticas públicas de expansão da acessibilidade digital ao conhecimento e de mitigação das “sombras de saber” no Sul Global, que para um olhar mais apurado remontam efetivamente ao período colonial.

A contra-hegemonia do acesso ao conhecimento na prática

Para além dos salões suntuosos de encontros da ONU e do G20, esses são mecanismos que subsidiam atividades de pressão por meio de política popular, mobilização, constrangimentos transnacionais, sensibilização do setor acadêmico, da advocacia internacional, entre outros. Vale a pena considerar o efeito dessa recente proliferação de iniciativas contra-sistêmicas, como as licenças creative commons, portais como Sci-Hub, Library Genesis, inclusive no que diz respeito aos índices globais de produção acadêmica, científica e tecnológica, já que os mesmos tornam obsoletas na prática as velhas leis e tratados de proteção à propriedade intelectual e podem impulsionar transformações e atrair atenção para questões de maior urgência. Desde que observando parâmetros mínimos de regularidade, disponibilidade e transparência, é possível desenvolver medidas de acesso, desafio e questionamento do status quo autoral, bem como examinar a sua possível eficácia por meio de estudos de caso, métodos quantitativos e uma agenda internacional de maior influência sobre normas e padrões globais de propriedade intelectual, especialmente em ambientes acadêmicos.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Fundador e membro do Conselho Científico do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em regime de cotutela com a Université libre de Bruxelles, na Bélgica. É também Professor de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN (Centro de Direito Internacional). Foi estagiário docente dos cursos Relações Econômicas Internacionais, Ciências do Estado e Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado, é também membro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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