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Abuso de direito e a má interpretação do Marco Civil da Internet

1 de maio de 2017

Três anos após a promulgação do Marco Civil da Internet e quase um ano desde sua regulamentação (Decreto nº 8.771/2016), é imprescindível refletir sobre a interpretação e a aplicação desses dispositivos, seja no dia a dia dos tribunais, seja nas relações de consumo e empresariais dos diversos agentes aos quais eles dizem respeito. Afinal, a maturidade do entendimento sobre o Marco Civil pode proporcionar conclusões acerca de sua proporcionalidade, adequação, ou até mesmo insuficiência no cenário legislativo brasileiro.

Sobre os pedidos de remoção de conteúdo

Por meio de uma análise jurisprudencial preliminar, é possível observar que grande parte dos casos envolvendo a aplicação do Marco Civil da Internet nos tribunais atualmente diz respeito à responsabilidade dos provedores de aplicação e aos pedidos de remoção de conteúdo, previstos pelo artigo 19 dessa lei, especialmente em sede de tutela antecipada (§ 4º):

Art. 19.  Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal.

3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.

4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3o, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Acontece que muitos provedores de aplicação envolvidos nessas ações, como Facebook e Twitter, buscam um delicado equilíbrio entre a manutenção de redes sociais seguras e livres para seus usuários. Postagens supostamente caluniosas, injuriosas e difamatórias estão sujeitas a remoção a pedido de pessoas que tiveram sua honra objetiva e subjetiva ofendidas (artigos 138, 139 e 140 do Código Penal). Por mais criticáveis e ultrapassados que esses tipos penais possam ser, se houver excesso na aplicação do artigo 19 do Marco Civil e remoção desse conteúdo, essas ações podem acabar efetivamente gerando descumprimento do § 2º do mesmo dispositivo, ou seja, uma ameaça à garantia constitucional de liberdade de expressão online.

Por exemplo, em algumas ações é deferida antecipação de tutela para determinar que provedores de aplicação procedam à exclusão de postagens, em prazo determinado, sob pena de aplicação de multa diária (cujo teto máximo por vezes nem mesmo é estabelecido), bem como o impedimento de quaisquer postagens que vinculem seu autor. Decisões como essas têm sido frequentemente reformadas em segunda instância, já que exigem que o provedor aja como verdadeiro órgão censor das publicações que envolvem os ofendidos, o que atenta contra os princípios da liberdade de expressão e da livre manifestação do pensamento, protegidos pelo Marco Civil da Internet e pelo artigo 5º da Constituição Federal.

É o Poder Judiciário que pode ditar aquilo que viola direito alheio e que, por essa razão, deve ser removido de suas redes sociais. Não é competência do provedor de aplicações decidir, antecipadamente, o que infringe ou não o direito dos usuários, com exceção de seus termos e condições de uso, que são previamente estabelecidos. Além disso, muitas dessas decisões desconsideram a existência de homônimos na rede social, o que torna praticamente impossível (e economicamente inviável para esses modelos de negócio) a diferenciação prévia o conteúdo que tem relação ao agravado ao que tem relação a qualquer outra pessoa cadastrada no site com o mesmo nome.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet também determina como requisito básico a necessidade de individualização do conteúdo por meio de ordem judicial que indique sua URL. O objetivo é tornar a remoção de conteúdo a mais objetiva e pontual possível, com objeto de exclusão judicialmente determinado. Caso contrário, haveria insegurança jurídica na imposição genérica da interpretação, pelos provedores de aplicação, do teor de conteúdos eventualmente relacionados ao nome dos usuários, o que seria também uma obrigação antijurídica. Não é razoável determinar que qualquer conteúdo futuro (não especificado, mas referente a um usuário) seja removido de sites e redes sociais.

Abuso de direito na interpretação do Marco Civil

O abuso de direito na interpretação do Marco Civil da Internet também é uma constante na rotina dos tribunais, especialmente em razão de partes e autoridades que buscam quebrar o sigilo dos dados pessoais, cadastrais e de comunicação de usuários online. Sobre essa temática, vale a pena citar recente acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Agravo de Instrumento nº 2258514-69.2016.8.26.0000), envolvendo o governador Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho e o provedor de aplicação Twitter.

Em Ação Cautelar, o governador conseguiu decisão que determinava a informação, pelo provedor de aplicação, dos dados cadastrais e endereços IP de uma série de usuários do Twitter. Segundo Geraldo Alckmin, mediante a publicação de críticas de cunho pessoal a ele, vários usuários teriam ultrapassado os limites de sua liberdade de expressão online, garantida tanto pelo artigo 5º, IV, da Constituição Federal, quanto por artigos do Marco Civil da Internet como os artigos 2º e 8º, resultando em danos à honra do governador. Um abuso desse direito de liberdade de expressão poderia, em tese, justificar a identificação dos dados cadastrais dos usuários para eventual responsabilização nos tribunais.

Além disso, Geraldo alegou que os comentários foram feitos anonimamente, possibilitados pela rede social do provedor de aplicação. Os nomes de usuário no Twitter, no entanto, não configuram anonimato, até porque seus dados cadastrais envolvem não apenas a utilização de contas de e-mail vinculadas, como também endereço de IP. Para que esses dados não sejam compartilhados de maneira abusiva e a quebra frequente desse sigilo passe então a inibir seus usuários de utilizar o Twitter, o deferimento de medidas como a requerida pelo governador depende de motivação detalhada do órgão julgador.

No caso em questão, muitas das mensagens compartilhadas por meio do Twitter não passavam do mero compartilhamento de notícias veiculadas por jornais de grande circulação, o que não se caracteriza como abusivo, e, portanto, não justifica a quebra de sigilo dos dados cadastrais.

O Tribunal de Justiça deu provimento parcial ao Agravo de Instrumento, reconhecendo que diversas das postagens levantadas por Alckmin não passavam de compartilhamentos de reportagens jornalísticas. Apesar de conterem teor crítico sobre a atuação do político, não representavam uma quebra do direito à liberdade de expressão.

Não tendo sido caracterizado o exagero do princípio da liberdade de expressão, considerou-se injustificável a coleta dos dados dos usuários da rede social, em observância ao artigo 7º, I e IV, do Marco Civil da Internet, que determina a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, além da sua proteção em caso de violação (I), e o não fornecimento a terceiros dos seus dados pessoais, salvo mediante expresso consentimento ou nas hipóteses previstas em lei (VII).

Também foi empregado o artigo 22, parágrafo único, da mesma lei, segundo o qual é preciso haver indício mínimo de que o comentário ou o compartilhamento de informações pelo usuário se mostra ilícito, sob pena de abusividade da quebra de sigilo de dados (I), além da demonstração de que o acesso a esses dados pelo interessado será útil para investigação ou instrução probatória (II), e a indicação do período a que se referem os registros (III).

Constatou-se, no entanto, que esse não foi o caso de todos os comentários publicados por usuários e citados pelo governador como abusivos. O Tribunal reconheceu que algumas postagens de fato dirigiram ofensas diretas e pessoais a Alckmin, chamando-o de “ladrão”, “mentiroso”, “corrupto”, “ladrão de merenda”, entre outros. Com relação a esses usuários, manteve-se a decisão relativa à coleta de dados das contas, assim como dos endereços de IP desses usuários.

Caminhos perigosos na interpretação e aplicação do Marco Civil da Internet

O problema relacionado ao cerceamento desse direito dos usuários é justamente o slippery slope (em inglês, algo como ”caminho perigoso”, ou “caminho escorregadio”) que ele representa: um mecanismo que relativiza a liberdade de expressão, por exemplo, e abre gradualmente as portas para uma série de novos atentados a esse direito, especialmente por agentes que têm, a sua disposição, o aparato estatal e midiático, como é o caso do governador de São Paulo. A mesma lógica se aplica às decisões que determinam remoções de conteúdo, ou a entrega de dados de comunicação entre usuários de uma mesma rede social.

Apesar de o Marco Civil ter estabelecido parâmetros de aplicação para o poder decisório do magistrado, muitos ainda desconhecem sua sistemática, os objetivos e o histórico que promoveram sua promulgação, bem como os próprios princípios técnicos e funcionais pelos quais a arquitetura da rede se organiza. Isso dá ensejo a más interpretações sobre a lei, decisões desproporcionais e que promovem efetivas distorções nas relações online. Nesse contexto, se faz ainda mais necessário o monitoramento de decisões e projetos legislativos que envolvem essa lei, por iniciativas como o Observatório do Marco Civil da Internet, a Coalizão Direitos na Rede e o Mosaico do Observatório da Internet no Brasil.

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